Marília

O que é que eu faço seu doutor?

Doutor é um termo acadêmico. É doutor quem fez doutorado e, em tese, o título só deveria ser aplicado nas universidades. Não é assim. O termo está nas ruas e assim, na base dos usos e costumes populares, vamos em frente: quer saúde? Procure o doutor, no consultório ou no fórum da cidade.

Nenhum deles pode garantir 100% a solução do seu problema, mas um deles pode garantir pelo menos que você consiga levar para casa o remédio que precisa ou fazer aquela cirurgia complicada.

O que nenhum dos dois vai conseguir fazer por você é desconstruir (o termo tá na moda, não é não?) essa estrutura cadela de serviços que não consegue oferecer atendimento necessário. A saúde sozinha já é um problema sem tamanho, talvez o maior do país. Imagine como isso cresce quando a falta de saúde vira problema judiciário.

Em vez de um, dois serviços públicos emperrados. Em vez de um, dois gigantes a mobilizar de forma rápida para salvar uma vida. Dois em termos. Imagine o caso da cirurgia cardíaca que um cidadão só conseguiu na Justiça.

Sabe Deus quantos pontos de atendimento, sabe quantos setores tiveram de ler, reler e empurrar a pelada, fazer laudos, relatórios, explicar o inexplicável: não vai dar. Como assim não dá? É um despacho administrativo para dizer “ganhe na loteria ou prepare o velório”? “Aqui não deu, tente uma igreja, templo ou terreiro de umbanda”?

Claro que não se acusa ninguém de premeditadamente dizer “deixa sofrer”. Mas na prática é o que acontece, um jogo de empurra, de justificativas técnicas para negar o inegável, o básico de atendimento para manter uma vida.

E quem tem que decidir é o juiz?

Precisou de juiz para municipalizar e criar avanços nunca vistos?

Precisou da senhora sisuda, cega e de espada na mão – o símbolo da Justiça – para que os bairros ganhassem postos de saúde que pudessem criar o sonho de hospitais vazios?

Algo está errado demais. Não dá para imaginar porque esse tipo de situação não pode ser resolvido em uma instância administrativa com poder para fazer um trabalho de triagem médica que está sobrando para o juiz: entender quem não tem dinheiro, está com relatórios médicos e toda prova de que precisa de um remédio. Quem não faz a prova de nada disso não leva, como não leva na Justiça também.

A prefeitura, os hospitais e estruturas de saúde na cidade estão forrados – nos cargos concursados e técnicos– de gente competente e capacitada para ler, entender e decidir. Não deveria ser preciso emprestar ao Judiciário um caso que já é problema no executivo.

Não deveria, mas acontece todo mês. Em outubro foram pelo menos quatro vezes.

Um quadro que a cada dia muda o conceito do que espera um paciente quando descobre sua doença. Vai-se ao posto de saúde com medo de sair não com uma receita mas com um cartão de advogado cada vez que um paciente perguntar “e agora, o que é que faço, seu doutor”.