A sanção presidencial do novo Código de Processo Civil, com poucos vetos, coloca o cenário jurídico processual cível sob a expectativa do novo e seus interrogantes. Agora, cabe a todos, principalmente à doutrina, elaborar uma construção interpretativa vocacionada à implementação dos preceitos fundamentais previstos na Constituição Federal. O papel reservado ao juiz é de suma importância neste contexto.
A primeira forma de Estado, após a revolução burguesa, foi baseada no modelo de Estado não intervencionista. Neste modelo, o direito, e, por conseguinte, o processo civil, reservaria ao juiz um papel de mero coadjuvante.
É o juiz sem poder, mero aplicador dos textos legislativos sabiamente elaborados pelo poder competente e que, pela sua excelência, bastaria ser aplicado à situação pretérita. Estava, assim, exaltado o “sucesso” do princípio da subsunção.
O Código de Processo Civil, então, ajustou esse modelo de juiz. Neutro, imparcial, equidistante das partes para, após cognição ampla, plena e exauriente, dizer o direito ao caso concreto com certeza, reconstruindo o passado (historiador) e declarando o valor indenizatório devido ao dano causado.
Inexiste intervenção e, muito menos, interação do juiz (Estado) com as partes. Sua postura é exatamente o contrário: de equidistância. Não se tem como negar o fato de que o juiz deste código é aquele que em muito se assemelha com a atividade do historiador. Seu trabalho é voltado, preponderantemente, para o passado, com raras exceções.
O direito atual passou a servir ao homem, dando relevo à sua dignidade. Um novo modelo de Estado e de Direito exige, igualmente, outro modelo de juiz. O princípio da subsunção cede lugar ao da criação.
A interpretação judicial é iluminada de requinte constitucional, notadamente, dos seus fundamentos e valores, conforme os artigos 1º e 3º da Constituição. A prioridade é a efetiva tutela dos direitos e não uma mera faculdade de se ajuizar a ação.
O Código recentemente sancionado, apesar de não refletir fielmente essa alteração paradigmática, caso pretenda realmente ser instrumento de Justiça para o cidadão, deverá ser interpretado por esse viés. Sua eficiência será verificada não enquanto mero instrumento, mas, na sua exata capacidade de concretizar o direito no mundo dos fatos e num tempo satisfatório para as partes interessadas.
O processo e os procedimentos devem ser pensados na medida em que sejam capazes de tutelar o direito material. Ou seja, é deixar de pensar o processo pelo próprio processo para dar concretude ao direito material projetado na norma. Essa é a interpretação que se deve empregar à tutela jurisdicional, como corolário à plena garantia do direito fundamental de ação (art. 5º, XXXV, da Constituição).
O direito fundamental à adequada tutela jurisdicional exige do juiz uma postura capaz de dar proteção condizente com os preceitos normativos previstos na norma de direito material. Ainda que o processo se ressinta de técnica processual, caberá ao juiz empregar esforços para, em respeito ao direito fundamental de proteção, atender efetivamente o que lhe é pleiteado.
Atualmente, não se pode pensar em tutela do direito sendo prestada por um juiz espectador, preocupado na recomposição do passado (historiador). Ao contrário, pressupõe um juiz que possa emitir ordens e fazê-las cumprir. No entanto, aos preocupados com o aumento do poder do juiz, cabe relembrar que não se trata, na verdade, de aumento.
O que se busca é uma racionalização do seu poder ante a necessidade de prestar uma tutela em nível constitucional. Em outras palavras, o poder é inerente à atividade jurisdicional. O juiz exerce parte da soberania do Estado exatamente porque é membro e não mero representante dele. Por isso, a expressão Estado/juiz. Assim, é um erro falar em aumento ou diminuição desse poder.
Existem meios de controle, notadamente, pelas garantias constitucionais/processuais do direito de ação, contraditório, fundamentação das decisões etc. No entanto, se apesar disso, o juiz se mantiver “neutro”, acaba por anular o uso do seu poder, necessário para sua atuação.
Se o Judiciário é chamado, cada vez mais, a participar da vida dos cidadãos, por decisões que possam permitir, até mesmo, inclusão social, a racionalização do uso do poder exige procedimentos capazes de dar vazão a essa necessidade. O juiz sem poder, portanto, é um mito!
Os fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º) e os objetivos fundamentais (art. 3º) retiraram da lei o seu sentido absoluto. Sua importância passou a ser subordinada à obediência aos direitos fundamentais previstos no texto constitucional.
O entendimento de acesso à Justiça e, sobretudo, do papel do juiz, são remodelados para se vislumbrar um juiz atuante, inclusive, para decidir e determinar políticas públicas, já que o mito da neutralidade foi sepultado quando a Constituição albergou a necessidade de se prestar tutela não somente à lesão, mas, principalmente, à ameaça (art. 5º, XXXV). O juiz historiador, então, ficou na história!
Benedito Cerezzo Pereira Filho é professor da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), participou da Comissão Especial do Novo CPC e sócio do escritório Eduardo Antônio Lucho Ferrão Advogados Associados.