Havia um lugar na fantasia daquela criança que só tinha cachorro.
Olhava-se para quem quer que fosse e lá estava um perro.
Alguns eram mais volumosos, outros bem minguados, raquíticos; vinham com pelagens mais curtas ou longas.
Uns tipos estranhos já nasciam sem rabo.
Mas, era raro. E quando abanavam o rabo imaginário abanavam a si mesmos.
A criança imaginava que havia raças diversas: gigantes e anões.
Coitadinha, em sua inocência, não os agrupava por cores: amarelos, branco e preto etc.
Também notou que, apesar de alguns terem um porte mais elevado, um pouco metidos, eram no fundo apenas cachorros e todos se mordiam em suas cachorradas.
Alguns se coçavam mais, outros menos. Porém, todos se lambiam pra se reconhecer como amigo-inimigo.
Nem era tanto por causa do cheiro, que, evidentemente, variava de um pra outro, cheiravam-se mesmo pra se identificar como cachorros.
Avistou um pequeno bem metido à besta, que latia bem agudo.
E outro bem grande que se abaixava para todos.
Não entendeu nada, até que imaginou se estavam com pulgas ou sarnas.
Também via que alguns comiam muito ou tudo que queriam, e que outros mal comiam as fagulhas deixadas nas latinhas.
A única abundância era a água, mas com o tempo passou a rarear – chegou mesmo a faltar.
Pensou ainda porque os coitados tinham tantos mosquitos a sua volta. Olhou melhor e viu que eram pernilongos.
Em sua cabeça de criança, na verdade, eram todos iguais: legítimos vira-latas.
Ele via uma imensa legião de vira-latas. Só isso.
E assim ia passando seus dias.
Havia uma bela cachorrinha que quase não se misturava. Para a criança, aquilo era uma incógnita.
Por que a luluzinha não se mete com os outros?
Foi aí que a criança percebeu que ela estava toda peladinha, muito tosada.
“ – Nossa? O que houve com a lulu?”…perguntou-se? E já respondeu: “vai ver o pai dela fez isso”.
Talvez por isso tenha deixado-a um pouco de lado.
Até que, parece mentira, mas é verdade, no dia 1º de Abril a carrocinha chegou e levou seus amiguinhos de imaginação.
Era o fim da brincadeira para a criança.
Alguns nem voltaram mais, ou voltaram mancos, quebrados. Outros perderam o encanto, não brincavam mais.
Por fim, veio a saber tempos depois que muitos pegaram raiva crônica; coisa incomunicável a uma criança.
E quando nem se lembrava mais dessas tontices, para seu total espanto, voltou a ver uma cena inusitada.
Uma mulher nua, num protesto político. Não haveria nada de mais, a não ser pelo fato de que ela queria ver o dia 1º de Abril acontecer de novo.
Dessa vez pensou que não adianta mesmo, longos anos se passaram, e tudo deu no mesmo: os vira-latas querem virar poodle.
Mas aí já não viu graça alguma: o dia 1º de Abril levara toda a inocência.