A morte do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano esticou a lista de perdas entre os pensadores devotados, talentosos e sensíveis na compreensão da realidade histórica e social do nosso continente. Notabilizou-se internacionalmente com a publicação, aos 30 anos de idade, do livro As veias abertas da América Latina, em 1971.

Escrito de abrangência ambiciosa, juvenil e contundente, era natural que os leitores fossem atirados à corrente de opinião que condenava, abertamente, a trajetória das relações sociais e internacionais vigentes na maioria dos países latino-americanos naquele momento.

As ditaduras sanguinárias no Uruguai e no Chile, em 1973, e na Argentina, em 1976, ainda estavam por vir. Elas lhe dariam o tom profético do inescapável e que amplificou, ainda mais, as repercussões críticas do livro. No Brasil, foi editado somente em 1978.

 

O livro aberto

Folheio curiosamente o meu exemplar. Foi comprado em uma feira de livros, em Madrid, em 1982. A recomendação de sua leitura partiu de um professor de geografia, no ensino médio. Constato tristemente que não fiz anotações em suas páginas, procedimento padrão, adotado somente quando tornei-me estudante universitário. Recordo sorridente de tê-lo lido, devorando cada capítulo, ininterruptamente.

Os nomes de lideranças indígenas e nacionalistas presas, mortas e torturadas, eram contrapostos aos de governantes, empresários e militares corruptos e violentos. Impossível guarda-los todos mas alguns tornaram-se inesquecíveis para mim, como o rebelde Tupac Amaru, nos Andes, o presidente Artigas, no Uruguai, e o escritor Miguel Angel Astúrias, na Guatemala, entre os primeiros. Pencas de coronéis e generais, de diplomatas e empresários de norte-americanos, entre os segundos.

Naquele momento, a minha experiência marcante com a leitura foi antes a familiaridade que adquiri com o idioma castelhano, de grande utilidade nos meses que permaneci na Espanha. Os anos seguintes acenderam-me a atenção para a América Latina, sua gente e sua história.

 

Nos livros de História

Em meados da década de 1980 e na seguinte os regimes ditatoriais foram sumindo nos principais países latino-americanos. A gana do individualismo neoliberal varreu o continente com fúria impiedosa. A pobreza e a omissão política foram apontadas não como o saldo de duas décadas de repressão e de exploração econômica desenfreada mas como atestados de incompetência e de atraso diante da nova era, a da globalização.

Surgiram ideias e autores em torno de uma suposta idiotia latino-americana, toscamente apontada na condenação do livre-mercado, das empresas estrangeiras e das potências mundiais. Ao lado desta, outra suposição correu trecho. A da história não ou mal contada da América Latina rendeu dinheiro a outros tantos aventureiros do espírito.

O século XXI trouxe novos momentos políticos e experiências sociais. A idiotia revelou-se restrita a ditos autores e a entusiastas das privatizações e da liberalização irresponsável nas economias latino-americanas. Já a história parecia mudar com a busca renovada de distribuição de renda, participação política e inclusão social. O desafio de sua realização permanece em aberto nos dias de hoje.  O livro de Galeano é parte dessa história.