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Bases da cultura de exceção da Ação Católica ao neopentecostalismo

Em tempos de Brasil moderno que anda como caranguejo, especialmente na seara do fascismo salvacionista e religioso que invade a mentalidade comum, sempre é oportuno retomar a história e a análise crítica. No texto Ação Católica – católicos integristas – jesuítas – modernistas, Cadernos do Cárcere, o pensador italiano Antonio Gramsci analisa a posição centrista/cesarista da Igreja católica na Itália. Para nós, será o guia para tomar de empréstimo recursos que permitam visualizar o papel ocupado pelas igrejas e seitas neopentecostais.

O período anterior à formação da Ação Católica – 1789/1848 – explicita o embate pela laicização e secularização do poder. Nesse período de incubação apresentaram-se os fatos e os conceitos de nação e de pátria, como norteadores das massas populares insatisfeitas com o jugo religioso da Igreja Católica. Na Itália, o anticlericalismo após 1848 foi, inclusive, militar. A vitória do liberalismo seria consagradora, como concepção do mundo e não só como filosofia política. O que, ao revés, forçaria a Igreja Católica buscar a organização de Partido Político que a defendesse (Gramsci, p. 147).

Esta tentativa de se salvar ainda tem reflexos diários, como se vê na oposição entre determinadas expressões: “cristãos e criminosos”. Além de pensamentos eurocêntricos salvacionistas: “cristãos e homem civilizado são sinônimos”. Ora, é patente a lógica da exclusão, a exemplo de outras expressões decorrentes: “cristãos e presos”; “cristãos e soldados”. Até o desfecho final que opõe “cidadãos e soldados” (de Deus). Esta deturpação político-cultural, por sua vez, não passaria incólume: cristão em francês resultou em crétin (daí a designação de cretino, em italiano) ou grédin (patife).

Para que se escondessem os anseios aristocráticos da Ação Católica, sob o domínio papal, foi criado o Partido Popular, mais palatável ao mundo moderno. Além do aprendizado de que o significado da Ação Católica, no passado – guardadas as proporções –, deve ser tomado para se analisar a ameaça exercida hodiernamente pelo neopentecostalismo ao Estado Laico.

A Ação Católica foi totalitária em um duplo sentido (como concepção total do mundo, numa sociedade em sua totalidade) e, literalmente, parcial, uma vez que requereu um partido político (Gramsci, p. 152). Àquela altura, a Igreja enfrentava dois adversários de peso: i) desagregação parcial de sua concepção de mundo (cosmopolitismo) em virtude das cismas e de outras seitas, quebrando sua hierarquia e hegemonia; ii) apostasia e indiferença das massas.

Portanto, tratava-se de um inimigo interno e de outro externo. O terreno político não era mais sacro e, por isso, para não ser eliminada da luta política, a Igreja recorreu aos meios empregados por seus adversários no plano do realismo político. Desse modo, entrava a Igreja na defensiva, como força subalterna. Para nós, no Brasil da segunda década do século XXI, isto traz pistas do porquê a Bancada BBB se destacar tanto.

Tanto lá, quanto cá, a pauta legislativa da exceção (que concentra o capital) é ativa: 1) a propriedade privada – especialmente a fundiária, o B de boi – é um direito natural; 2) a desapropriação deve ser paga mediante indenização compensatória: o capital não tem prejuízos; 3) as diferenças e as desigualdades de classe são um desígnio de Deus – e da “meritocracia” dos bens nutridos e estudados; 4) a esmola é um dever cristão, assim como o dízimo é protegido contra qualquer tentativa de tributação estatal; 5) por fim, resta ver que a questão social é de fundo moral e religioso, pois a miséria é uma escolha do miserável descrente de Deus.

A par disso, ocorria uma feroz batalha entre jesuítas e integristas (de extrema-direita). Com a perda já sentida de controle hegemônico, as novas formas de nacionalismo – do Renascimento à Revolução Francesa – revigoraram-se sob o nazismo e ameaçavam a existência da Igreja enquanto poder e na vida de fato (Gramsci, p. 160). Porém, mesmo diante desse quadro, a Igreja não se opôs ao nazi-fascismo; em alguns momentos estiveram até alinhados. E nesse malthusianismo religioso – por trás do qual há um darwinismo social – replica(va)-se um eficaz mecanismo de exceção (e covarde): in corpore vili. Jovens acompanhavam um também jovem aspirante a príncipe e apanhavam no lugar dele (Gramsci, p. 166).

Por fim, somando e somatizando-se algumas de suas conseqüências, pode-se dizer que o bonapartismo brasileiro – de aguda face neopentecostal – é admirador de Voltaire e de sua apologia aristocrática à salvação do povo, por meio do poder que cura. Espíritos daquela época ainda enevoam nossos tempos hereges: os esnobes (do rap aos cultos de ostentação); os adoradores da violência (das brigadas militares da fé ao espancamento de infiéis macumbeiros); os falsos místicos, saídos das conversões maravilhosas estão aptos às conversas diretas com o Espírito Santo (o descarrego “desmacumba” o ser); os salvadores “imperturbáveis” que salvam todos do “déficit da graça” (ou da desgraça); os integristas que combatem o Estado Laico e o liberalismo, mas jamais os fiéis escudeiros do capital. A cultura da exceção, portanto, tem lastros bem mais firmes do que julga o inocente fiel.

Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos

Marcos Del Roio
Professor Titular de Ciências Políticas da UNESP/Marília