A primeira reação à crítica ao discurso do ódio é culpar os que lutam por direitos sociais, que teriam, segundo a acusação, espalhado o ódio de classe quando deveriam ter estimulado o valor do trabalho. A teoria social subjacente a este esquema explicativo simples e imediatamente inteligível, embora rotundamente falso, é a de que sociedade é um aglomerado de indivíduos batalhando por seus sonhos individuais, sem nenhum laço que os solidarize com um horizonte comum. Nesta teoria, o Estado é reduzido a um poder coercitivo cuja única função legítima é garantir os direitos individuais, de modo que os direitos sociais aparecem como uma intervenção autoritária por parte do Estado, gerando desequilíbrio e injustiça.
Na atual quadra histórica, quando o capital financeiro penetrou todas as esferas da vida social, do quê dá testemunho eloquente a publicidade das empresas do ramo e as políticas de crédito popular, o etos competitivo tornou-se o único valor legitimador da ação social e, o patrimônio individual, o sinal de distinção numa sociedade de indivíduos. No contexto dessa imagem de mundo (falsa pela insuficiência, mas convincente pela funcionalidade), toda medida protetiva do Estado em favor dos direitos sociais é tomada como injusta, pois ela tem como alvo os perdedores, os inaptos para a competição.
Por isso, esse tipo de medida mobiliza os sentimentos típicos que os bem-sucedidos devotam aos fracassados: caridade (quando ainda resta alguma identidade com o perdedor), desprezo (o perdedor é a imagem invertida do espelho), medo (o perdedor é uma ameaça ao patrimônio conquistado), ódio (o perdedor pode tramar uma mudança das estruturas) etc.
O primeiro desses sentimentos é o único que se reveste de certa positividade, mas cultivá-lo além da medida do desencargo de consciência comprometeria o valor maior, que estrutura as instituições e, por conseguinte, a vida cotidiana: o etos competitivo. Assim, se estabelece um círculo vicioso (nada virtuoso) de estímulo à competição, medo e ódio como sentimentos predominantes, e fortalecimento das políticas repressivas, testemunhado pelo exponencial aumento da população carcerária, no Brasil e no mundo, além dos absurdos índices de homicídio na América Latina.
Evidentemente o etos competitivo é da natureza do capitalismo, mas, para não voltar muito na história, após o morticínio de duas guerras mundiais movidas pela competição entre capitais, firmou-se o entendimento de que o mercado deixado a si mesmo gera desequilíbrios (não há competição sem perdedores), cumprindo ao Estado o papel de atuar através de políticas de bem-estar para restringir este desequilíbrio a níveis socialmente aceitáveis. A ideia de nação que partilha um destino comum foi o valor que embalou projetos de desenvolvimento e legitimou a intervenção estatal em favor dos direitos sociais.
É essa visão predominante no pós-guerra que foi visceralmente combatida a partir da segunda metade da década de 1970, sendo substituída pela competitividade como valor estruturante das relações sociais em escala planetária. O resultado mais visível deste combate é a dessolidarização das classes médias e capitalistas com as classes populares dos seus respectivos países, por certo em graus variados conforme cada caso. É evidente que medo e ódio, como paixões humanas, estão sempre presentes nas relações sociais, mas podem ser restringidos a níveis socialmente aceitáveis quando algum valor maior solidariza uma maioria social em torno de um destino comum, o que não pode ser confundido com o argumento esgrimido pelo conservadorismo de subordinação do eleitorado a uma elite esclarecida.
Jair Pinheiro é professor do Depto. de Ciências Políticas e Econômicas da UNESP/Marília.