Mário Maestri escreveu um belo artigo sobre o que está sendo chamando nas redes de “guerra do turbante”, do qual me sirvo de uma formulação basilar para remeter a questão a um fenômeno mais amplo, a que pertence, creio, a referida guerra: a guerra dos guetos.

Segundo Maestri, os que defendem que brancos não devem usar turbante, afirmam, “Em geral, os termos da declaração de guerra foram os seguintes. Eu sou negra, uso turbante. Tu é branca e necessariamente racista, mesmo quando não sabes. Portanto, tira a mão de meu turbante. Se não o fizeres, serás liquidada com a acusação de ‘apropriação cultural’, ou seja, adesão simbólica à exploração racial e econômica que teus ancestrais realizaram aos meus, no passado, e que sigo sendo objeto, por parte dos brancos, no presente.”

A lógica subjacente a esta afirmação pode ser traduzida assim por um branco, racista, naturalmente: “Eu sou branco, uso terno. Tu é negro e necessariamente vitimista, mesmo quando não sabes. Portanto, tira a mão do meu terno. Se não o fizeres, serás liquidado com a acusação de ‘apropriação cultural’, ou seja, adesão simbólica ao sucesso econômico que teus antepassados, incapazes de realizar, invejaram nos meus, no passado; inveja da qual sigo sendo objeto por parte dos negros no presente.”

Chocante? Certamente, mas mantive a estrutura do argumento, apenas trocando os termos, para pôr em evidência que o discurso que sustenta a formação de guetos é o mesmo, trocando-se somente os termos que designam o grupo que se quer discriminar. Enfim, é de fácil apreensão e está disponível para todos que queiram restringir-se viver apenas entre iguais, aliás, uma distopia felizmente impossível de se realizar, pois, no limite, sempre restará a diferença subjetiva de cada um. Quanto essas pessoas não terão calado da sua singularidade, ou da alheia, para garantir a homogeneidade do espaço dos iguais?

Retomando o fio da questão. O argumento da formação de gueto se apoia na suposição de que o “eu”, ou o “nós” quando designa o grupo dos iguais, que reivindica uma identidade é detentor de uma essência ancestral consanguineamente herdada, indiferente à história e, como tal, é portadora de conteúdos exclusivos. A apropriação desses conteúdos por outros constituiria um atentado. No passado, essa suposição de uma identidade essencial pura e originária gerou um movimento de retorno à África e, como não poderia deixar de ser, à descoberta de que não eram africanos, mas americanos; pois a história havia feito o seu trabalho, assim como, no início da imigração brasileira para o Japão, os decasséguis descobriram lá que não eram japoneses.

É da natureza das culturas (aliás, é um paradoxo instigante atribuir uma natureza à cultura) estabelecerem intercâmbio quando entram em contato, justamente porque tudo que chamamos cultura (língua, religião, música, literatura, vestimenta, hábito alimentar etc.) são práticas que se atualizam nos usos que se faz delas; práticas que respondem a uma dupla demanda subjetiva: a socialização no grupo e a afirmação de uma singularidade individual. Esta segunda ganhou especial relevo com a modernização.

Evidentemente o intercâmbio cultural não ocorre num espaço de poder simétrico, porque não ocorre em abstrato, mas em condições histórico-sociais determinadas de dominação, subordinação e afirmação entre classes, grupos étnicos, gênero etc., de modo que exploração e opressão se cruzam de diversas maneiras.

Uma estratégia, entre outras possíveis, para escapar do enganoso e problemático caminho da essência identitária, é abandonar categorias genéricas e generalizantes (como brancos e negros, por exemplo) e examinar como chegamos até aqui, ou seja, como classes, grupos étnicos, gêneros etc. estabeleceram intercâmbio cultural no contexto dessas relações de dominação, subordinação e afirmação. Com isso, quero deixar claro que a afirmação de que os brancos escravizaram os negros é falsa justamente pela generalização, o que permite generalizar responsabilidades e identidades no presente.

A escravidão, nosso passado histórico que continua pesando em práticas de violência física e simbólica, é fundamentalmente um fenômeno de luta de classes, de uma classe de senhores que escravizou africanos para trabalhar na lavoura brasileira, com isso criando a classe dos escravos. Não é banal acrescentar que a empresa escravocrata europeia contou com apoio da rivalidade entre grupos africanos para a captura daqueles que viriam a ser escravizados na América.

O escravismo, como toda relação de produção, requer uma ideologia que a justifique e reproduza. O racismo como narrativa que inferioriza o negro, ou seja, suas características fenotípicas e suas práticas culturais é essa ideologia, portanto, uma ideologia de classe produzida e reproduzida nas instituições sociais (da família aos tribunais) do nosso passado escravocrata e que continua se reproduzindo hoje, sob novas condições, porque uma ideologia não desaparece simultaneamente com o desaparecimento da classe que a produziu, ela é reapropriada por outras classes e grupos para sustentar posições de dominação das quais supõem legítimos detentores.

Justamente pelo que disse acima, sobre a natureza da cultura, o racismo não pôde e não pode evitar o intercâmbio das tradições culturais que formam o povo brasileiro, é por isso que, há cem anos, a polícia subia o morro para reprimir as rodas de samba, mas hoje não ocorre a ninguém excluir o samba da cultura brasileira. Tomando-se o racismo como narrativa de inferiorização do outro e, o samba, como narrativa de afirmação de si, portanto, transformando-os em categorias de análise e de modelos de prática cultural, chegamos a duas atitudes distintas e opostas de relação com o outro: o racismo, pela negação do outro; o samba, pela afirmação de si. Claro, quem se afirma com orgulho e altivez pode incorporar, sem medo, como faz o samba, o que o outro tem que nos desperta interesse e nos enriquece, pois o que deve ser negado no outro é o que também deve ser negado em nós mesmos: o espírito de gueto, que é o núcleo do racismo.

Para finalizar, é uma decisão política se vamos adotar uma ou outra atitude. Assim, convém deixar claro que a opção tem consequências. A opção pelo gueto, que é a do racismo, de proibir ao outro compor sua identidade com os conteúdos simbólicos que lhe apraz, implica implodir as pontes que medeiam nossas relações, já que estamos condenados a viver numa coisa chamada sociedade, sobrando apenas a polícia como força coercitiva capaz de garantir que cada um se mantenha no seu quadrado. A opção pelo samba implica avançarmos na construção de um mundo onde caibam muitos mundos, por isso é um equívoco do oprimido a opção pelo gueto, pois, feita a opção, não lhe será permitido circular além do gueto onde se colocou.

 Prof. Dr. Jair Pinheiro, Unesp de Marília