A recuperação de móveis do período em que Juscelino Kubitschek ocupou a Presidência da República, na década de 1950, foi anunciada, em junho deste ano, como realização do governo Temer. Funcionalidade e beleza seriam as motivações dessa evocação do passado. Uma contradição aparente em um governo sabidamente ilegítimo e que reitera o passado social atribuindo-lhe sentidos de modernidade retórica e, agora, também estética.
Mesas, cadeiras, escrivaninhas, projetadas pela equipe de Oscar Niemeyer quando da construção de Brasília serão exibidas e utilizadas em salas e gabinetes presidenciais. O simbolismo deste golpe, agora publicitário, é precisamente associar um governo caduco ao futuro da nação, invertendo a linha do tempo. JK anunciava o futuro. Sem futuro promissor, Temer anuncia o passado.
A atenção ao mobiliário, seu poder de comunicação social e simbologia política parece-nos elementar e corriqueira nos dias de hoje, caracterizado pelo irrestrito desenvolvimento do consumo de massa. Essa e outras percepções coletivas dos objetos recebem estudos sistemáticos, no âmbito das ciências sociais, há pouco mais de um século. Desde o célebre estudo sociológico de A teoria da classe ociosa, de Thorstein Veblen, em 1904, passando pela crítica da estética da mercadoria, dos filósofos da Escola de Frankfurt, até a recente História dos quartos (2009), da historiadora Michelle Perrot.
Nos idos de 1950, ainda, o historiador francês Fernand Braudel aceitava a incumbência de redigir um livro sobre o passado das sociedades na época moderna, construindo um panorama sobre a Europa e demais regiões do globo antes da revolução industrial, entre os séculos XV e XVIII. A coleção “Destinos do Mundo” era dirigida por Lucien Febvre e pretendia abrir horizontes e expectativas frente os desafios na reconstrução das sociedades e das economias, para além do cenário de destruição e das experiências traumáticas das duas grandes guerras na primeira metade do século XX.
Febvre concebera uma coleção que deveria apresentar as recentes perspectivas do conhecimento histórico, econômico e cultural. O exame das mudanças e das permanências na vida social e econômica estava no cerne das investigações que a historiografia francesa promovia nas páginas da revista Annales, editada desde 1929.
Braudel ficou encarregado da elaboração do referido volume sobre a história econômica. O livro seria publicado em conformidade com o perfil solicitado, abordando épocas passadas, distintos territórios e sociedades, reunindo ampla documentação, dados, informações, análises e interpretações originais sobre as atividades econômicas pré-industriais e a sua história. Febvre, falecido em 1956, não conheceu o livro.
Ele foi publicado somente onze anos depois, em 1967, quando Braudel concluiu o texto – Civilização material e capitalismo (séculos XV – XVIII) – e anunciou a elaboração do segundo volume. Na obra o autor retomou e modificou conteúdos e análises desenvolvidas ao longo de cursos que ministrou no Collège de France, entre 1954 e 1962: “O capitalismo Moderno”, “A França no século XVI”, “A economia do século XVIII”, “A vida material do século XVI ao XVIII”.
Em 1979, houve a publicação, não de um, mas de dois novos volumes que completavam o primeiro, reeditado com pequenas alterações, compondo a trilogia Civilização material, economia e capitalismo (séculos XV-XVIII). Estava finalizada a encomenda que Lucien Febvre realizara no longínquo ano de 1952.
Esta digressão era incontornável para a compreensão do significado que adquiriu, desde então, o estudo largamemte desenvolvido sobre a vida material das sociedades humanas. Em artigos publicados em 1961 Braudel pretendia expandir o debate e identificar campos de estudo compreendidos na denominada vida material, abrangendo segmentos diversos, mas aproximados, como alimentação, habitação, vestuário, níveis de vida, técnicas e dados biológicos. Braudel parecia desdobrar a resposta enunciada, em 1944, quando interrogava a obra do geógrafo Max Sorre: “Há uma geografia do indivíduo biológico?”.
O volume de 1967 trouxe os capítulos organizados segundo aquelas temáticas e incorporava as moedas e as cidades como meios e espaços de trocas. Entre os artigos de 1961 – “Vida material e comportamentos biológicos” e “História da vida material” – e a publicação de Civilização material e Capitalismo, a economia que era destaque no volume da Coleção “Destinos do Mundo” recobrou o seu lugar.
Não abordou apenas a rotina e os hábitos reiterados de vida, as “estruturas do cotidiano”, como saúde, alimentação e trabalho. Também o cálculo e a atenção deliberados, individual e coletivamente, que se ensaiam nas trocas elementares do dia a dia, foram enlaçados na dinâmica da economia de mercado e do capitalismo. Moedas e cidades, instrumentos e resultados da passagem desta dimensão da vida social e econômica – a vida material – para outras que a complementam e integram, a vida econômica propriamente dita. Esta dimensão foi examinada nos dois volumes seguintes da trilogia.
Ao cindir o estudo da história econômica em dois patamares – o da vida material e o da vida econômica – sob a inspiração do sociólogo Georges Gurvitch, desdobrando a segunda em estudo sobre o “capitalismo”, os negócios de amplo alcance territorial e de lucros, Braudel apontava para temas que animariam a historiografia francesa e novas gerações de profissionais, entre 1970 e 1990, com os problemas, objetos e abordagens da chamada Nova História.
A expressão vida material guardaria essa generalidade e comodismo de origem. Não se converteu em conceito operacional. Manteve-se, antes, como a designação de um amplo espectro de temas de interesse e de complexidade para diferentes disciplinas e áreas do conhecimento, não apenas da história, mas também da antropologia, economia, sociologia, linguística, medicina, literatura, botânica, geografia, entre outras. A vida material constituiu-se em campo multidisciplinar de pesquisa e de educação formal e não formal.
A trajetória analítica e investigativa da vida material no âmbito da história e demais campos do conhecimento, após a II Guerra Mundial, respondeu aos estímulos sociais e culturais do último meio século. Os 25 anos dourados do desenvolvimento capitalista, alimentados pela reconstrução das economias europeias e a japonesa, as doutrinas de nacionalismo econômico na América Latina e na África, a pujança da indústria de consumo de massa, irradiadas a partir dos EUA, marcaram a segunda metade do século XX sob o signo do materialismo. No mesmo período, a industrialização acelerada, a retórica ideológica e filosófica do comunismo soviético revestiram de fundamentos materialistas os sentidos da vida humana.
No plano da cultura, a partir de 1946, a criação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Conselho Internacional de Museus (ICOM), mobilizava governos, instituições e profissionais na valorização e na cooperação pela preservação e a difusão dos acervos e bens culturais, alçando para a escala mundial um vasto campo de atuação técnica, administrativa e intelectual.
As políticas públicas de patrimônio cultural e natural, desde então, não deixaram de se expandir. A recuperação, a restauração e a preservação de obras de arte, paisagens urbanas, sítios arqueológicos, áreas naturais e expressões culturais ganharam evidência, orçamentos, estudos e publicidade.