La petite mort.

Em algum momento de sua vida você desejou uma pequena morte?

Não a morte tal qual conhecemos, mas uma breve pausa na vida, um momento em suspensão onde você pudesse descansar de tudo?

Ou aquela pausa onde você, de alguma forma, pode apreciar o que é belo, ou um momento mágico, o sorriso de uma criança ou de alguém que ama?

Aquele beijo, aquele abraço ou aquele cheiro tão peculiar?

E por falar em sorriso, tem sorriso mais bonito do que o sorriso de alguém que amamos?

As lembranças quase todas vão embora, mas a forma que sua mãe sorria, o barulho da risada dela, como ela batia em quem estivesse perto enquanto gargalhava.

O sorriso daquela pessoa que foi ou ainda é amor, de como os olhos dele fechavam, do movimento do tórax e do final do sorriso em que ele ou ela terminava com um abraço dizendo que era só uma brincadeira.

O sorriso fica porque é a manifestação da felicidade, e quando nós amamos alguém o que desejamos é que essa pessoa transborde sorrisos.

Vamos fazer um teste básico, se você ama alguém, aposto que a resposta é sim, feche os olhos agora, pense na pessoa. Qual é a lembrança dela que vem à sua cabeça?

Na minha memória só vem o sorriso e, por mais engraçado que pareça, sorrio junto. Mesmo não vendo mais a criatura, mesmo não sabendo mais dela, do que tem feito da vida, dos seus projetos, mesmo que seu cheiro esteja indo embora com o tempo, o seu gosto seja uma lembrança vaga, o seu sorriso ainda é forte em mim.

Porque o sorriso é a manifestação do que foi bom, daquilo que por algum instante foi mágico, daquele momento suspenso no universo onde você parou e pensou: eu poderia morrer agora.

Às vezes estamos tão cansados que desejamos realmente a morte, não essa pequena pausa a que me referi acima, mas o cessar, o findar, dessa vida e lida diária que nos deixa sugados, abatidos, entregues, procurando um sentido para a existência.

São essas pequenas pausas na vida cotidiana que trazem um sentido e um fôlego novo para sair do fundo desse oceano e emergir.

Tem uma música da Legião Urbana em que o Renato diz que são as pequenas coisas que valem mais, nessa mesma canção ainda há um barulho de trovões e ele entoa corre, corre, corre, que vai chover, olha a chuva, nesse exato momento, alguém com uma sensibilidade ímpar, enfeita a música com sons de crianças gritando.

Com certeza você deve ter imaginado toda a cena se ouviu a música, eu, pobremente, tentei descrever o quão bonito pode ser. E é. Tem cara de felicidade crianças brincando na chuva.

Tem cara de felicidade bolinho de chuva e chá num dia frio, tem cara de felicidade o abraço do seu filho, do seu sobrinho, o beijo com o bico mais avantajado que existe de um serzinho tão maravilhoso e carinhoso.

Tem cara de felicidade o beijo, o abraço, o cheiro de quem amamos.

Tem uma cara danada de felicidade ler Saramago, Mario Quintana e Manoel de Barros.

Tem um rostinho faceiro de felicidade ouvir Chico Buarque, Maria Bethânia, Pink Floyd.

São essas pequenas pausas, mortes, que nos tiram do cotidiano, do trabalho cansativo, do salário que mal dá para pagar as contas mensais.

Que não nos permite morrer de tristeza por um amor não correspondido, por palavras duras que quase nos destroem, por ouvir uma injustiça ou mesmo presenciar.

Esses pequenos momentos nos livram da loucura que nos ronda e cerca com noticiários recheados de motivos para jogarmos a toalha.

Os francês apelidaram carinhosamente aquele momento pós-orgasmo de la petite mort, um momento de desgaste e transcendência.

Que possamos ter momentos como esses nessas pequenas mortes corriqueiras e cotidianas, que a vida possa trazer pausas para ouvir barulho de crianças no quintal rindo e felizes, que possamos ouvir barulho de chuva no telhado e que possamos abraçar quem desejamos sorrindo.

Pausa, suspensão, e plenitude, que você recorde agora o sorriso de quem ama e que ao vê-lo rindo em seus pensamentos, você possa sorrir de volta.

Que a vida te tire o ar por uns instantes e que te devolva em sorrisos, ou a gargalhada da sua mãe ou o beijo do seu filho…