O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que seria assinado pelo Carrefour esta semana beneficiando a Educafro, o Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo e órgãos públicos pelo assassinato de João Alberto Freitas , homem negro espancado até a morte por seguranças brancos terceirizados em uma unidade do supermercado em Porto Alegre (RS) em novembro, empacou devido a alterações nas cláusulas do contrato.
A rede de supermercados enviou uma nota à imprensa na quarta-feira anunciando que as negociações estavam avançadas para o desembolso de R$ 120 milhões ao longo de vários anos em ações de inclusão e combate ao racismo. Mas, de acordo com as duas entidades sociais a serem beneficiadas, houve uma redução de R$ 5 milhões no valor final. Além disso, o Carrefour, segundo a Educafro e o Centro Santo Dias, se recusou a pagar os honorários dos advogados das organizações sociais.
Uma reunião entre os interessados avançou pela madrugada desta quinta-feira, mas sem sucesso. As alterações no TAC teriam sido feitas sem consulta prévia aos representantes dos movimentos sociais que participam das negociações.
A assessoria de imprensa do Carrefour informou que a redução para R$ 115 milhões foi um ajuste natural decidido por todas as partes. Afirmou ainda que, em nenhum momento, o acordo previa o pagamento dos honorários dos advogados dos movimentos sociais.
O assassinato de João Alberto, homem negro de 40 anos, em novembro do ano passado, por seguranças brancos terceirizados em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre gerou comoção em todo o país. No Dia da Consciência Negra, um dia depois do crime, houve manifestações em capitais do país. Os protestos ganharam apoio do “Black Lives Matter”, movimento que ganhou visibilidade mundial pela luta contra o racismo nos EUA.
Maior indenização em ação de ajustamento no continente
Os R$120 milhões inicialmente propostos pelo Carrefour, segundo o diretor-executivo da Educafro, Frei David, seriam a maior indenização pública jamais paga por uma empresa em ação de ajustamento de conduta na América Latina.
“Mas quando fomos ler o contrato nesta quarta-feira, percebemos as alterações e buscamos saber o motivo. Não houve qualquer contato prévio conosco sobre isso. O Carrefour quis nos obrigar a aceitar o termo assim mesmo. Assim que nos explicarem, conversaremos e entraremos em acordo”, afirma Frei David.
O Centro Santo Dias é uma entidade vinculada à Igreja Católica que atua em defesa dos direitos humanos. E a Educafro promove educação para negros e pobres, inclusão nas universidades e no serviço público, através da defesa de cotas, e de metas de inclusão nas empresas.
Na proposta inicial, dizem as organizações, R$ 70 milhões seriam destinados à concessão de bolsas de estudo para pessoas negras, prioritariamente em nível de ensino médio, técnico, superior e de pós-graduação stricto e lato sensu. Com a redução da verba, este investimento teve um corte de R$ 2 milhões, informa o presidente do Centro Santo Dias, Luciano Caparroz.
Ainda segundo o texto da proposta original do TAC, ao qual o GLOBO teve acesso, R$ 8 milhões seriam destinados a bolsas para pessoas negras, prioritariamente para estudo de idiomas, inovação e tecnologia, com foco na formação de jovens profissionais para o mercado de trabalho. O novo montante é de R$ 6,5 milhões.
“As verbas foram retiradas das principais políticas e não nos deram explicação. E temos atuação específica na sociedade civil, como determina a Constituição de 1988, justamente para ajudar a reformular o cenário das desigualdades”, diz Caparroz.
A Educafro também questiona a decisão da empresa de não bancar o custo dos advogados da organização que atuaram nas negociações.
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“Os advogados do Carrefour são pagos a preço justo. Por que não os nossos? Isso é mais um sinal do racismo estrutural que ainda não foi bem resolvido no coração do Carrefour”, critica Frei David, ressaltando que o pagamento, neste caso, seria destinado à construção de um escritório de advocacia exclusivo para a defesa das pessoas negras. “Seria o primeiro escritório especializado na defesa do negro no Brasil. Nosso plano era o de inaugurá-lo em 30 dias. Falamos isso abertamente para eles (Carrefour).”
O Carrefour disse que isso nunca foi colocado em seis meses de negociação nem na mesa de discussão com as autoridades.
As tratativas pra o TAC aconteceram entre Carrefour, as duas instituições sociais, além do Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União, a Defensoria Pública do Estado e o Ministério Público do Trabalho.
Contudo, Caparroz afirma que as organizações da sociedade civil “tiveram dificuldade em participar do processo decisório” e que, na proposta de contrato final, apresentada a eles nesta quarta-feira, um montante de R$ 7,5 milhões, dos R$ 115 mi agora era destinado ao MPF, sem explicações.
O Carrefour, no entanto, nega que haja um recurso destinado ao MPF e afirma que o valor total é para as ações previstas no TAC.
“Nós não fomos convidados para participar de todas as reuniões. Ontem (quando vimos a proposta final) apareceu esta cláusula com um valor para ações de combate ao racismo estrutural que não existia, destinado ao MPF. O que existia era um fundo geral. E não concordamos (com a mudança) porque as partes não devem gerir recursos, assim como nada vai ficar para a Educafro ou para a Arquidiocese”, argumenta Caparroz.
Em nota, o Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul (MPF/RS) confirmou o procedimento para assinatura do TAC com o Carrefour, mas informou que ele ocorre sob cláusula de confidencialidade.
De acordo com o presidente do Centro Santo Dias, o valor inicial acordado pelo Carrefour para pagamento seria o equivalente a três dias de faturamento de toda a rede de supermercados e, antes mesmo da proposta apresentada na quarta-feira, já houve uma primeira redução:
“Isso daria R$ 550 milhões. Quando vieram negociar, começaram com R$ 68 milhões, alegando que era o resultado líquido. Isso foi uma frustração (para nós). (Depois), o próprio Carrefour anunciou R$ 120 milhões.”
O Carrefour, no entanto, afirma que jamais ofereceu proposta de equivalência a três dias de faturamento.
Educafro e Centro Santo Dias relataram que aguardam nova reunião com a empresa, mas que, até o momento, não foram procurados. Não há mais previsão para assinatura do TAC. O Carrefour informou ao GLOBO que está à disposição para negociar.