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O incêndio da Cinemateca Brasileira: uma crônica premeditada

Protesto na Cinemateca Brasileira. Sem contrato, a Cinemateca foi cuidada por funcionários — Foto: Facebook trabalhadores da Cinemateca Brasileira
Protesto na Cinemateca Brasileira. Sem contrato, a Cinemateca foi cuidada por funcionários — Foto: Facebook trabalhadores da Cinemateca Brasileira

Na noite de 29 de julho assistimos atônitos e atônitas à notícia sobre o incêndio que atingiu um galpão da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo. Estranhamente, o sentimento compartilhado coletivamente não era o de espanto, mas de uma indigna confirmação de uma tragédia anunciada.

Esse episódio foi antecedido por outros dois acontecimentos recentes que marcam o descaso do poder público com a nossa memória cinematográfica, e somados, escancaram a crise da Cinemateca. Trata-se do alagamento acontecido em fevereiro de 2020, quando uma enchente inundou um galpão da Cinemateca Brasileira na Zona Oeste de São Paulo, atingindo sobretudo materiais como mobiliário, fotografias, livros e folhetos. Entre o mês de julho e agosto ainda de 2020, torna-se pública uma ação do Ministério Público Federal em São Paulo contra a União por abandono intencional da Cinemateca.

A Cinemateca Brasileira era administrada desde 2018, pela Associação Comunicativa Roquette Pinto (Acerp), quando em dezembro o governo Bolsonaro, por meio da Secretaria Especial de Cultura ligada ao Ministério da Cidadania, rompeu o contrato com a organização social. A troca de gestão se deu em meio a diversos protestos realizados pelos funcionários e entidades amigas da instituição (SOS Cinemateca, Cinemateca Acesa, Frente Ampla Cinemateca Viva e Mariana em Movimento).

Nestes protestos já eram denunciados o risco de incêndio, atrasos nas contas de água, luz e de salários. As faixas, falas e gritos denunciavam o governo federal por desarticulação administrativa motivada por questões ideológicas. A resposta veio com um ofício, no qual o secretário especial de cultura do governo federal, Mário Frias, oficializa o pedido da entrega das chaves dos imóveis da Cinemateca pela Acerp, que despede 52 funcionários capacitados para a preservação cinematográfica

Em 15 janeiro de 2021, a Sociedade Amigos da Cinemateca assume a gestão da Cinemateca Brasileira de forma provisória até que uma nova organização social fosse contratada para assumir a administração. Em maio deste ano, em audiência virtual, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) suspendeu a ação judicial contra a União por abandono da Cinemateca Brasileira, sob comprometimento do governo federal de apresentar um cronograma de ações voltados para preservação do patrimônio no prazo de até 45 dias. Com o fim do prazo em julho a Justiça alerta sobre o risco de incêndio e concede mais 60 dias para a continuidade das ações de preservação. E no fim dessa breve e necessária cronologia, podemos concluir que não deu tempo de impedir a tragédia anunciada, talvez fosse essa a intenção.

A Cinemateca Brasileira é a principal instituição de preservação da memória do cinema no Brasil. Desde 1940, desenvolve atividades em torno da preservação e difusão da produção audiovisual brasileira. Responsável pelo maior acervo da América do Sul, conta com cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como fotos, roteiros, cartazes e livros, entre tantos outros.

É importante salientar que a Cinemateca é um museu vivo, ele alimenta uma cadeia de atividades por meio de seus pilares de preservar, difundir e restaurar. Desnecessário dizer, mas ultimamente precisamos repetir incansavelmente o óbvio, que centenas de pesquisadores dependem deste acervo para produção de conhecimento sobre nosso cinema. Que centenas de pessoas ficam órfãs dos projetos de formação oferecido pela Cinemateca e mais, que milhares de cineclubes e exibidores independentes perdem seu referencial. A cinemateca é viva porque sua memória faz girar a memória do nosso país, colabora na construção da identidade nacional, conta com um parque tecnológico e saberes especializados, tudo isso construído com dinheiro público. É nosso!

É inadmissível ver todo esse patrimônio nacional à mercê de jogos políticos, burocráticos e posicionamentos vazios. Em nota publicada pelo governo federal lemos: “A Secretaria já solicitou apoio à Polícia Federal para investigação das causas do incêndio e só após o seu controle total pelo Corpo de Bombeiros que atua no local poderá determinar o impacto e as ações necessárias para uma eventual recuperação do acervo e, também, do espaço físico”. A Cinemateca precisa de funcionários especializados, de manutenção dos depósitos climatizados, de verba para gerir as ações e do fim de um governo que alicerça todos os dias a destruição da cultura do Brasil. Mais do que nunca precisamos encarar nosso papel de cidadãos brasileiros e nos contrapor a esse projeto em curso.

Muito já ouvimos sobre a ocasião da ocupação nazista em Paris, contam-nos que Henri Langlois, diretor da Cinemateca Francesa, decidiu enterrar latas com filmes e esconder milhares de filmes nos sótãos de casas, o que possibilitou salvar uma grande parte da história do cinema francês. Será esse nosso caminho?

Além de toda degradação que age silenciosamente no espaço da Cinemateca, os trabalhadores da Cinemateca Brasileira publicaram um manifesto sobre o incêndio, no qual nomeiam como Crime Anunciado e descrevem as perdas, tais como parte do Arquivo Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A. (1969 – 1990), parte do Arquivo do Instituto Nacional do Cinema – INC (1966 – 1975) e Concine – Conselho Nacional de Cinema (1976 – 1990), documentos de arquivo ainda em processo de incorporação, parte do acervo de documentos oriundos do arquivo Tempo Glauber, do Rio de Janeiro, parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes (cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35mm), matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, parte do acervo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) – a produção discente em 16mm e 35mm – e parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade. E por mais aflitos que fiquemos lendo essa lista, não existe nenhuma forma de reparar tais perdas.

Todo esse abandono e o abominável terceiro incêndio da Cinemateca Brasileira nos força a enumerar algumas saídas. A primeira é a de nomear e denunciar o que chamo aqui de as ameaças da Cinemateca, a segunda é traçar urgentemente um plano de recomeço para a Cinemateca e, por último, gritar a plenos pulmões sobre as funções e importância da Cinemateca. Nos faz convocar ainda o grande idealizador do projeto da Cinemateca Brasileira, Paulo Emílio Salles Gomes, que nunca cansou de nos lembrar sobre a desimportância do cinema no Brasil, mesmo que hoje isso não impeça a sua perseguição, e assim declara em Festejo muito pessoal em 1977: “Se permanecer o descaso pela conservação de filmes, as comemorações do centenário do cinema brasileiro serão certamente perturbadas pela presença de uma cinemateca inimaginável, esquálida e acusadora.”

Precisamos reagir!

Priscila Constantino Sales
Professora de História e produtora cultural