Na casa do motorista de aplicativo Sérgio Rodrigo de Souza, o racionamento já começou e foi voluntário, depois que a conta de luz saltou de R$ 90 para R$ 230 de um mês para o outro. Para fechar as contas do orçamento, o jeito foi estabelecer um limite de 15 minutos para o uso do chuveiro elétrico. Passado esse período, o disjuntor desarma e é hora de encarar o banho frio.
Como Sérgio, brasileiros buscam alternativas para economizar ainda mais energia após nova alta na conta de luz, que começa a valer neste mês, com a criação da bandeira tarifária da escassez hídrica: quase 50% mais cara que a vermelha patamar 2 adotada até então. Na prática, o consumidor vai pagar R$ 14,20 a cada 100 quilowatt-hora (kWh) utilizados. O governo propôs dar um bônus para aqueles que conseguirem reduzir os gastos, mas especialistas alertam que na maioria dos lares será difícil obter o desconto.
Em 2018, conforme dados da Agência Internacional de Energia, o Brasil era o segundo país com a energia elétrica mais cara do mundo, pagando 354 dólares a cada Megawatt-hora (MWh), atrás somente da Alemanha, onde o custo é de 404 dólares por MWh. Para o diretor do Instituto Ilumina, Roberto Araújo, há chances de o país ganhar a liderança após os recentes aumentos. Como a média de consumo brasileiro é de 170 kWh, ele acredita que qualquer mudança de hábito no ambiente doméstico será um martírio.
“Nessa faixa de consumo, qualquer economia é um sacrifício. Essas pessoas vão ter que dormir no calor, evitar abrir a geladeira para tentar conquistar esse bônus. Não sei se no consumo residencial vamos conseguir essa economia que o governo está pretendendo”, opina.
O pesquisador do FGV CERI, Diogo Lisbona, também acha que a iniciativa não é suficiente. Falta, segundo ele, uma campanha para conscientizar a população sobre a real gravidade do problema.
“Em 2001, na época do apagão, as pessoas desligaram o freezer e trocaram as lâmpadas por fluorescentes. Hoje, todo mundo já utiliza lâmpadas de led, com melhor eficiência energética. Essa redução de consumo não é trivial”, analisa.
O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, não descarta, porém, a necessidade da adoção de um racionamento. Além da tentativa de evitar apagões, o economista do Ibmec RJ, Tiago Sayão, ressalta que é importante um esforço conjunto para, pelo menos, retornar à bandeira vermelha.
“A energia é um custo relevante para alguns setores, o que acaba pressionando a inflação. Então, esse aumento pode ser refletir também em outros produtos.”
Crise poderia ter sido evitada
Apesar de os frequentes aumentos nas tarifas de energia estarem sendo colados na conta de São Pedro, santo guardião da chuva, especialistas dizem que o problema poderia ter sido contornado se o país tivesse investido em usinas eólicas, solares ou, até mesmo, mais hidrelétricas.
O pesquisador do FGV CERI, Diogo Lisbona, diz que enquanto o custo para geração de um megawatt-hora nas termelétricas é em torno de R$ 2500, o valor para a produção da mesma quantidade de energia em hidrelétricas é de aproximadamente R$ 300. O diretor do Instituto Ilumina Roberto Araújo acrescenta que na década de 50 o Brasil passou por uma crise tão grave quanto a atual, com afluência baixa por cinco anos, que poderia ter sido experiência:
“Isso não é uma surpresa. Faltaram investimento e planejamento. Trocamos hidrelétricas que seriam boas para a gente por termelétricas.”
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Gasto maior nas indústrias O maior gasto de energia não ocorre nos lares domésticos, mas sim na indústria, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (Epe). Segundo a resenha mensal do mercado de energia elétrica, divulgada em agosto, enquanto as famílias usaram 151.713 GWh nos últimos 12 meses, a indústria utilizou 179 mil GWh, com destaque para os setores metalúrgico, químico, de produtos minerais não metálicos e de extração de minerais metálicos.
Em julho, inclusive, a indústria teve o maior consumo para o mês desde 2014, com alta de 9,8% em relação a igual período de 2020. Já o consumo residencial desacelerou 0,5% devido às temperaturas mais amenas.
No inverno, junto a uma cafeteira, a televisão é responsável pelo maior consumo energético na casa da especialista em Experiência do Cliente Bruna Rossi, de 30 anos. Isso porque ela gosta de assistir a programas diferentes do marido e, para isso, eles usam duas televisões simultaneamente. Com a implementação da bandeira da escassez hídrica no fim do ano, porém, seu maior temor é o ar-condicionado, que costuma ser bastante utilizado pelo casal no verão.
“Já conversamos sobre nos policiarmos com luzes que deixamos ligadas desnecessariamente e até sobre passar um pouquinho mais de calor neste verão, pois não vai ter como”, conta.
Brasil parado: inflação freia consumo das famílias
Além de ter que driblar a crise de energia em casa, sem direito trabalhista, Sérgio Rodrigo de Souza enfrenta uma jornada de trabalho de 13h por dia para obter o sustento da família, que inclui a mulher, Yasmin Alves, servidora da Uerj, e o filho Bernardo, de 3 anos. Com a disparada no preço dos combustíveis este ano, a aritmética passou a fazer parte da seleção de corridas. Ele só aceita trechos mais longos, pois corridas pequenas já não compensam o custo.
A família foi forçada a fazer escolhas também no cardápio do dia.
“Aqui, trocamos a carne vermelha pelo peixe, porque é mais barato. Antes, era o frango, mas como ficou caro, agora trocamos por carne de porco. No começo do ano, a gente gastava R$ 600 por mês em mercado e, hoje, além disso, estou comprando os não perecíveis essenciais, como feijão, assim que recebo, e lá se vão mais R$ 500”, explica Yasmin Alves, esposa de Sergio.
“Não consigo juntar dinheiro para ficar meses sem trabalhar, me recuperando”, lamenta.
O comportamento da família Souza é um exemplo do que ocorreu no país no segundo trimestre, quando mesmo com a reabertura da economia, o consumo ficou estagnado, o que surpreendeu especialistas.
Com a inflação em alta e juros crescentes, o consumo das famílias, tradicional motor da economia, ficou estável no segundo trimestre na comparação com os três primeiros meses do ano. Importante motor da economia, ele ainda está 3% abaixo do período pré-pandemia, o que contribuiu para o desempenho aquém do esperado do PIB.
A recuperação da economia brasileira perdeu fôlego, e o Produto Interno Bruto (PIB) recuou 0,1% no segundo trimestre, um resultado que indica estabilidade, segundo o IBGE.