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'Senti que era hora de mulheres contarem suas histórias', diz cineasta

Gabriela Bernd “Senti que era hora de contar as nossas próprias histórias”, diz cineasta Marcela Lordy sobre mulheres no audiovisual
Gabriela Bernd “Senti que era hora de contar as nossas próprias histórias”, diz cineasta Marcela Lordy sobre mulheres no audiovisual


Após levar ao cinema, em 2022, o longa “O livro dos Prazeres”, a diretora e cineasta Marcela Lordy se prepara para a estreia do média-metragem “O Amor e a Peste”, que acontece no primeiro semestre deste ano, e “Aquário com Peixes”, sua primeira experiência à frente de um espetáculo teatral.

Primeiro longa de ficção da diretora, “O livro dos Prazeres” é uma livre adaptação da obra “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”, de Clarice Lispector, uma das mais importantes escritoras em língua portuguesa do século XX. Uma coprodução Brasil-Argentina, o filme traz para os tempos atuais a narrativa do livro publicado em 1969.

O enredo acompanha Lóri (Simone Spoladore), uma professora primária que vive a monotonia de uma rotina de trabalho e relacionamentos furtivos, até que conhece Ulisses (Javier Drolas), um professor de filosofia argentino egocêntrico e provocador. É com ele que Lóri aprende a amar, enfrentando sua própria solidão.

Marcela sempre se incomodou com a forma como, no cinema, o corpo feminino aparecia fragmentado. Foi por conta dessa percepção que ela optou por filmar as cenas de sexo que envolviam a protagonista sem nenhum corte. No ano do centenário de Clarice, o filme foi um dos destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

“As mulheres foram acostumadas a ler sobre o próprio corpo sob uma ótica masculina. Se o prazer sempre foi um tabu para a mulher, escrever ou falar sobre isso ainda hoje é problemático. Como realizadora mulher, sempre convivi com diretores homens e cansei de assistir histórias contadas por eles. Senti que era hora de contar as nossas próprias histórias”, afirma ela, em entrevista ao iG Delas .

Quem é Marcela Lordy

Marcela Lordy se apaixonou cedo pelas imagens. Foi depois de pegar emprestada a câmera de seu pai numa viagem ao Peru, quando tinha apenas 15 anos, que ela nunca mais abandonou o desejo de olhar por trás das lentes. Fez cursos de fotografia e se tornou laboratorista, até se formar em Cinema em 1999.

Passou mais de uma década como assistente de direção em trabalhos publicitários antes de migrar para filmes assinados por diretores como Walter Salles e Hector Babenco. Habituada a trabalhar em um mercado predominantemente masculino, foi a partir do convite de atrizes e produtoras mulheres que começou a construir sua filmografia.

O primeiro deles foi para dirigir o telefilme de média-metragem “A Musa Impassível” (2010). Até assinar seu primeiro longa de ficção, foram anos de investimento. Além de médias e longas metragens, em seu currículo, coleciona diversos curtas e alguns trabalhos para televisão. Dirige ainda o média “O Amor e a Peste” (2022), que estreia no primeiro semestre de 2023 nas plataformas de streaming .

Criada e encenada pelos atores Flavia Couto e Pedro Guilherme, a obra é inspirada no encontro amoroso entre os escritores franceses Anaïs Nin e Antonin Artaud numa Paris de 1933, contaminada pelo nazismo. Esse encontro se esbarra e permite um espelhamento com as vivências do próprio casal Flavia e Pedro durante os tempos de pandemia, em 2020 e 2021, no governo Bolsonaro. O roteiro traz reflexões sobre erotismo, amor e loucura.

Em maio, a diretora tem mais uma estreia: “Aquário com Peixes”, sua primeira direção no teatro. O espetáculo, que está em cartaz no Sesc Santana, em São Paulo, tem texto de Franz Keppler e idealização de Carolina Mânica, que protagoniza, junto de Natalia Rodrigues, uma história de amor, mas também de embate, entre duas mulheres completamente opostas.

Na trama, a promotora pública aquariana Anita se apaixona por Lídia, uma astróloga autêntica e pisciana, exageradamente sensível e emotiva, que a desperta para viver sua primeira relação com uma mulher, aos 40 anos e após se divorciar do marido. O público acompanha a descoberta que uma faz do mundo da outra e o florescer dessa paixão que precisa abraçar e contornar as diferenças.

No meio dessa história, Lídia descobre uma enfermidade com baixas chances de recuperação. E Anita se vê diante do dilema de enfrentar essa doença ao lado da companheira ou de seguir seu caminho sozinha. A personagem questiona a si mesma – e a plateia – até que ponto somos responsáveis pela pessoa com a qual compartilhamos momentos fantásticos da vida.

O iG Delas bateu um papo com Marcela Lordy sobre o trabalho de artistas na pandemia, as estreias deste mês e protagonismo feminino. Confira a seguir!

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IG DELAS: Em “O Amor e a Peste”, você precisa trabalhar com dois tempos: uma Paris de 1933, contaminada pelo nazismo, e uma São Paulo de 2021, pela pandemia de Covid-19 no Brasil de Bolsonaro. Como você enxerga um paralelo entre esses dois momentos históricos?

Marcela Lordy: A Paris de 1933 contaminada pelo nazismo e o Brasil de 2021 contaminado por Bolsonaro e pela Covid-19 foram momentos de caos e opressão política, nos quais os artistas se sentiram impotentes. Assim como a Flávia e o Pedro, eu também me senti isolada como artista durante a pandemia. O sentimento de revolta deles também era meu e de toda a equipe. O Brasil foi um dos países que mais matou a sua população ao longo da pandemia, por mero descaso e ignorância política. Um genocídio por parte de um governo que também fazia questão de boicotar seus artistas. Por isso, a plateia sem público aparece com tanta força, e os bastidores fazem parte da história. Era uma forma de nos mantermos vivos, potentes, criativos, fazendo o que a gente mais ama e sabe fazer.

Já “Aquário com Peixes”, que estreia em maio, narra o romance entre duas mulheres – uma delas que se vê em sua primeira relação homoafetiva, já aos 40 anos, após se divorciar do marido – e que são completamente diferentes uma da outra; uma do signo de Aquário, e outra, de Peixes. Como a Astrologia está presente na história? Podemos dizer que esse aquário também é uma metáfora para os conflitos entre as personagens?

Essa ideia da Astrologia é mais simbólica, já que o aquário é um lugar onde você está preso, e o peixe, teoricamente, é mais fluido. A Anita viveu até então representando o papel que a sociedade patriarcal esperava dela: uma promotora de sucesso, bem casada, boa mãe. Mas finalmente passa a escutar suas verdadeiras pulsões. E quando se vê diante do que esperam dela novamente, desaba e resiste em abrir mão da liberdade alcançada. Ela não quer se sentir presa novamente, no entanto, termina presa pela culpa, pelo peso da sua própria consciência em busca do autoperdão. Quem traiu quem ou quem está sendo honesta consigo mesma é a grande questão. Lídia, a astróloga pisciana, dá um aquário de presente de um ano de namoro, mas o aquário é mal cuidado e vai ficando turvo ao longo do tempo, assim como a relação delas.

A descoberta da doença de Lídia faz Anita se questionar se deve enfrentar a situação ao lado da companheira ou seguir seu caminho sozinha. O que você sentiu quando leu o roteiro pela primeira vez? É possível sentir raiva da personagem, ao mesmo tempo que se cria uma certa empatia por ela?

Um dos méritos do autor é entrar na pele das personagens e compreender suas escolhas sem julgá-las. O que é vivido por elas pode ser experimentado por qualquer um de nós, independente do gênero, identidade sexual, etnia ou classe social. Quanto li o texto, na hora, enxerguei um palco dividido no meio, simbolizando a separação entre Lídia e Anita, a comunicação cessada, a falta de escuta entre elas. E a gente tem dois fluxos de pensamentos, como se fosse uma mesa de ping-pong. São os dois lados de uma história de amor entre duas mulheres adultas interrompida, do nada, por uma das grandes surpresas da vida. No caso, uma doença fatal. Uma pensa na outra o tempo todo, transitando por sentimentos paralelos: medo, desejo, projeção, memória.

O livro “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”, de Clarice Lispector, acompanha a professora Lóri, que vive a monotonia de uma rotina entre a escola e relacionamentos amorosos furtivos, até que conhece Ulisses e se vê nesse processo de autodescoberta de si e do outro e de aprender a amar e ser amada e a enfrentar a própria solidão. De onde veio essa vontade de adaptar a narrativa para o cinema?

Através de Lóri, Clarice constrói pela primeira e única vez uma mulher protagonista que realiza seu destino obtendo a autoafirmação e a autorrealização – algo difícil, não só na literatura da época, mas ainda nos dias de hoje, mais de 50 anos após a publicação do livro. As mulheres foram acostumadas a ler sobre o próprio corpo sob uma ótica masculina. Se o prazer sempre foi um tabu para a mulher, escrever ou falar sobre isso ainda hoje é problemático. Como realizadora mulher, sempre convivi com diretores homens e cansei de assistir histórias contadas por eles. Senti que era hora de contar as nossas próprias histórias. Assim como Lóri, aprendi a amar e a me afirmar nesse meio tão masculino que é o do cinema.

E como a obra publicada em 1969 se aproxima da mulher contemporânea?

A trajetória de Lóri é a de toda mulher em busca de autonomia. Não só da mulher, mas de toda pessoa que tem coragem de olhar para dentro e enfrentar o que nem sabe que existe. Embora escrito em 1969, a história tem hoje um grande apelo, por se tratar da independência feminina e do aprendizado do amor, justamente quando ninguém mais tem paciência para o tempo do outro e vivem-se amores supérfluos, líquidos. Lóri aprende a viver através da humanização dos desejos; o amor não é mera satisfação dos instintos, mas algo muito além de uma relação puramente animal. Se desconstrói o mito do amor romântico; a obrigação de fazer o outro feliz sai do cônjuge e vai para o próprio indivíduo e suas escolhas.

Fonte: Mulher