Arte & Lazer

Marcelino Freire em Marília: o explorador das possibilidades linguísticas e literárias

Marcelino Freire em Marília: o explorador das possibilidades linguísticas e literárias

Em Marília para proferir a palestra “Escrever é ser” no próximo dia 13 de novembro, às 19h30, na Oficina Cultural Tarsila do Amaral, o escritor Marcelino Freire, pernambucano que vive em São Paulo desde 1991, é daqueles que inovam a estética literária. Lança no universo muito além das letras sobre o papel, traz ao público o encontro de sons fortíssimos com a sua poesia. Aliás, Marcelino Freire parece escrever para o ouvido, porque seus textos lidos em voz alta ganham uma dimensão maior do que já têm “apenas” na escrita.

É como se cada personagem realmente estivesse falando com o leitor, ou como se, ao ler em voz alta cada trecho das folhas, um teatro se armasse em frente a cada um de nós: impressionados com a arena dramática que nossa imaginação pode projetar ao ler/ouvir as frases, ou versos, da poesia-em-prosa de Marcelino Freire.

O escritor desfaz o padrão narrativo/descritivo de contos, por exemplo, no texto “Linha do tiro”, parte dos “cantos” do livro vencedor do Prêmio Jabuti em 2006, “Contos Negreiros” (Editora Record), lançando mão de diálogos entre uma senhora e um ladrão que estão dentro de um ônibus. Nesse conto, o ladrão tenta fazer um assalto, mas não tem sucesso, uma vez que a senhora não entende o que está acontecendo – ou se faz de desentendida, ou é desequilibrada, tanto faz. O que realmente chama a atenção é a estrutura formal de composição do conto. Elementos que seriam normalmente descritos por um narrador, são mostrados pelo diálogo: sabemos que os personagens estão no ônibus e que o ladrão tenta assaltar a senhora. Notamos o insucesso do assalto com a repetição contínua do diálogo, que parece mostrar, também, a nossa rotina: como o assalto – a violência, em última instância – se repete constantemente em nossa sociedade; e, como isso já é algo sabido, o autor se utiliza dessa estruturação diferente do conto para criar um estranhamento no leitor, fugindo, ou melhor, encarando de frente as formas gastas de linguagem, tanto quanto fugindo da tradição de como se escreve um conto, se é que criar é fugir, e se é que fazer arte é ser tradicional…

Marcelino Freire recusa o sistema-padrão de escrita, agindo em sua estrutura. Para tanto, ele cria uma nova linguagem, evidenciando que não está alienado e tampouco aliena seus leitores, possibilitando novos reflexos à nossa imaginação.

Mestre do gênero conto, dos textos concisos e incisivos, do verbo exato, cada um desses continhos condensados são mais que “pequenos textos”. Como o próprio escritor define em seus Contos Negreiros, escreve “cantos”, que talvez por isso mesmo trazem mais que poesia, fazem nossos olhos ouvirem músicas. Mas não são só contos que o escritor pernambucano faz: Freire se lançou no romance no final de 2013, com a publicação de “Nossos Ossos”, pela Editora Record.

Marcelino Freire é um escritor que não sabe ser clichê. É um artista que faz revolução com a linguagem que usa – as palavras – e sabe fazer quem acessa seu trabalho se sentir incomodado.  

Por motivos profissionais, não poderei acompanhar a palestra, me restando apenas escrever esta breve apresentação sobre o trabalho do escritor pernambucano. Bem vindo a Marília, Marcelino Freire!

Linha do tiro

— Não quero.
— Hã?
— Já disse que não quero.
— O quê?
— Chocolate.
— Chocolate?
— Você quer me vender chocolate, não é?
—Que chocolate, minha senhora?!!
— Bala-chiclete?
— Não, porra!
— O senhor é Hare Krishna, não é?
— Hã?
— Da Igreja Amanhece em Cristo, essas coisas?
— Não!
— É cego?
— Cego?
— Tá com uma ferida e quer comprar remédio?
— Chega, caralho!
— Isso é um assalto, não tá vendo?
— Onde?
— Aqui dentro do ônibus.
— E por que você não faz alguma coisa?
— Eu?
— Chama a polícia?
— Essa velha é doida!
— Quem é doida?
— Chapadona! Passa logo a bolsa?
— Não falei?
— O dinheiro, minha senhora.
— Não quero.
— Hã?
— Já disse que não quero.
— O quê?
— Chocolate.
— Chocolate?
— Você quer me vender chocolate, não é?
—Que chocolate, minha senhora?!!
— Bala-chiclete?
— Não, porra!
— O senhor é Hare Krishna, não é?
— Hã?
— Da Igreja Amanhece em Cristo, essas coisas?
— Não!
— É cego?
— Cego?
— Tá com uma ferida e quer comprar remédio?
— Chega, caralho!
— Isso é um assalto, não tá vendo?
— Onde?
— Aqui dentro do ônibus.
— E por que você não faz alguma coisa?
— Eu?
— Chama a polícia?
— Essa velha é doida!
— Quem é doida?
— Chapadona! Passa logo a bolsa?
— Não falei?
— O dinheiro, minha senhora.
— Não quero.
— Hã?
— Já disse que não quero.
— O quê?
— Chocolate.
— Chocolate?
— Você quer me vender chocolate, não é?
—Que chocolate, minha senhora?!!

— Bala-chiclete?
FREIRE, Marcelino. Linha do tiro. In: _____. Contos negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005. pp.43-48.

William César Ramos Lima é pós-graduado pelo Departamento de Linguística da UNESP/Assis. Participou em 2011/2012 da fase estadual e em 2013/2014 da fase regional do Mapa Cultural Paulista na categoria Conto. Escreve no blog williamtradutor.blogspot.com.br