O que eles querem de nós?

Com produção de Denzel Washington, que dispensa apresentação após décadas de presença em filmes antológicos – quem não se lembra do investigador inteligente acamado em ‘O colecionador de ossos’? – ‘Voz suprema do Blues’ estreou em 2020, ano de perdas e isolamento, trazendo consigo a marca de ser o último filme do ator Chadwick Boseman, que encarnou o herói da Marvel ‘Pantera Negra’ em longa campeão de bilheteria.

Mas ‘Ma Rainey’s Black Botton’, seu título no original é muito mais. Chadwick dá sua conta de dramaticidade ao filme. Deixa sua esperança de que atrás daquela porta pode haver um futuro, algo a se conquistar: apesar do nosso esforço sofremos muito para chegar até aqui, não seria justo que pudéssemos desfrutar de algum reconhecimento?

Voltamos para a Chicago da década de 1920, na efervescência de um novo mundo começando não para os Estados Unidos da América, mas sim para a gente sofrida que não tinha mais espaço nas plantações do Sul. O jeito era migrar para a metrópole, antecipando aquilo que anos mais tarde, nas décadas de 1950, 1960 e 1970 os brasileiros do Nordeste iriam realizar ao ‘descer’ para São Paulo. Aliás, Chicago e São Paulo possuem fortes traços idênticos de urbanidade e quem afirmou isso foi o escritor norte-americano William Falkner, quando esteve na Capital do Estado de São Paulo.

Após retomar a consciência superando uma ressaca daquelas e abrir a janela do quarto no hotel que estava hospedado na terra paulistana, a terra da garoa, o autor de ‘O som e a fúria’ virou e disse: “Mas que diabos eu vim fazer aqui em Chicago??!!’. Não era a cidade mais populosa de Illinois, mas sim a mais populosa do Brasil, e berço da poesia concreta.

‘A voz suprema do blues’, o título em português, chama mais a atenção do que o utilizado na produção dirigida por George Wolfe, contudo o original ‘Ma Rainey’s Black Botton’ preservou dois aspectos: o protagonismo da primeira diva do blues, Ma Rainey (1886-1939), e o título da peça que deu origem ao roteiro do longa, teatro este assinado pelo dramaturgo August Wilson (1945-2005).

Os diálogos de Wilson sintetizam o próprio blues: um grito pela liberdade e um aviso de que, as coisas podem estar dando errado, mas estamos aqui vivos. Com exceção do blues, que é tratado com respeito e honra em cada momento do filme, a supremacia se revela na interpretação fenomenal de Viola Davis. Ela consegue trazer para o público do Século 21 a essência, a malandragem e a energia sensual da chamada ‘mãe do Blues’, Ma Rainey.

Vigor e dramaticidade na performance de Viola Davis ao viver Ma Rainey liberam sementes de transformações, bem como inquietações, deixando no público, entre outras indagações, a seguinte: o que eles querem de nós? Ma Rainey soube muito bem o que eles queriam dela e, por isso, com coragem se colocou como a artista mas, antes, mostrou-se uma mulher vitoriosa.

Das frases que ganharam vida na voz de Viola Davis (atriz que interpretou a agente que monta o ‘Esquadrão Suicida’, no filme de mesmo nome) ditas por Rainey, a de que o blues nos ajuda a levantar da cama, na minha opinião, é uma das mais significativas. Também discorre sobre o significado da música na vida e no mundo, além de deixar a marca da noção clara sobre a arte que pratica: o blues estava aí o tempo todo, coube a mim, Ma Rainey, resgatá-lo e mostrá-lo para os EUA e para o mundo.