Marília

De onde saem os monstros

Essa semana comentei com um colega que tinha voltado a tomar oxalato de escitalopram. Fiz tratamento por seis meses com esse medicamento, um antidepressivo, e parei autonomamente. Resultado: voltei a ter insônias. Foi perceptível que precisava engolir um comprimido ao acordar todos os dias até que a médica descontinuasse. 

Depois de ouvir essa história, a pessoa disse: “Você tem que superar isso sozinha. Não fique dependendo de medicamentos, você tem que ser forte, só você pode se ajudar.”

Oi? Como assim?

As palavras de motivação surgiram para tirar uma Mariana infeliz do fundo do poço. “Erga essa cabeça e lute!”. Ela não sabe que a palavra de apoio foi, ao contrário do seu objetivo, muito preconceituosa. 

Eu não sou infeliz. Não levei um fora do boy, não estou insatisfeita com o meu trabalho, não tenho baixa autoestima. Eu tenho uma leve depressão, doença que altera a química do cérebro e que, em mim, dá insônia. Sinceramente, não preciso que falem comigo como se eu fosse participar do campeonato mundial na corrida pela vida.

Na semana que passou, assim como em todos os dias, tivemos dezenas de provas públicas do quanto somos despreparados para lidar com situações que fogem dos padrões do “eu mesmo” social. Sim, porque cada um tem o seu padrão, e se cor da pele não é “diferente” para mim, o “status de relacionamento”, por exemplo, é.

Eu, que sou feliz quando vou para a balada, encho a cara, danço, converso com pessoas diferentes e chego em casa bem depois do café da manhã não consigo acreditar em alguém que diz que um sábado a noite é perfeito para curtir uma jantinha a dois em casa. Eu acho que essa pessoa é uma puta mentirosa tentando convencer ao mundo e a ela mesma de que é feliz.

O contrário também pode acontecer. Quando eu digo, por exemplo, que estou muito bem sozinha e que tenho planos de passar o resto da vida assim, tenho certeza que muita gente pensa que é despeito porque sou solteira, que é da boca pra fora. 
Só quero ilustrar, nessas histórias bobas, de onde surgem os preconceitos mais sérios e que formam números inadmissíveis, como o tanto de pessoas da sociedade civil aplaudindo a redução a maioridade penal.

Confesso que não sou preparada para falar sobre o assunto, mas, como mãe, imaginei três situações: 

Meu filho de 16 anos pega o carro, vai a uma festa, bebe umas cervejas e, na volta, atropela alguém. 2- Meu filho entra na universidade e muda de cidade. Como não conhece nada no lugar novo, compra 200g de maconha e embarca com ela. 3- Meu filho, aos 17 anos, engravida uma menina  que conseguiu uma bolsa de estudos para fora do país. Em conversa, decidem por um aborto.

Quanto tempo ele merece dividir uma cela com outras 50 pessoas, ratos, baratas, comendo comida azeda, sofrendo todo tipo de abuso, para pagar por esses crimes? Ou ficar sem mesada uns três meses é o suficiente? “Haverá julgamento, Mariana, provavelmente ele não será preso”, disse minha mãe, quando debatíamos aos gritos (sim, ela é a favor). Mas a gente sabe que ele não será preso apenas se eu tiver dinheiro, como tudo que acontece no Brasil. 

Quando falamos em diminuir a maioridade penal, lembramos do pivete preto e pobre que roubou o celular para comprar crack, não é? Ou de casos extremos, como Liane a Champinha, de estupro e assassinato brutal. É essa nossa índole social preconceituosa intrínseca que ilustrei acima com as tais histórias bobas. 

Sinceramente, acho que não estávamos prontos para esse debate. Acho que, antes dessa discussão, alguns assuntos deveriam ser resolvidos. O primeiro deles é o sistema carcerário do nosso país, que, assim como tudo, consome muito dinheiro e não mostra nenhuma eficiência.

O segundo, são políticas públicas a favor da igualdade, já que pobre vai para a cadeia pagar por ser pobre, enquanto político corrupto fica em casa, gastando dinheiro do povo vergonhosamente surrupiado para curar os males que acometem seus corações. O terceiro, e mais polêmico, é sobre a descriminalização das drogas, já que é o sistema que mais “emprega” os menores infratores — e é muito mais jogo para as grandes facções que eles estejam dentro das cadeias. Mas estamos falando de preconceito, não de outros assuntos polêmicos que nunca serão debatidos enquanto existir uma bancada religiosa.

Perceba, na fala acima, outro preconceito vindo da minha voz, assim como a polêmica frase que saiu da voz do Boechat contra o Malafaia. Mesmo que estejamos certos, que tenhamos (nossos) motivos para o (contra) ataque, generalizar é algo que não deve ser feito, que faz com que percamos a razão.
Mais uma ilustração: certa vez, um repórter que frequentava uma igreja neopentecostal ficou escalado para uma pauta sobre o Dia da Mulher. Ele encontrou a história que achou pertinente, de uma mulher que se desdobra em mil para dar conta da vida. Clichê, mas não entremos nesse mérito. Ele abriu o texto dizendo que “assim como toda boa mulher, Maria acordava cedo todos os dias para preparar a comida de seu marido”. Sendo assim, o acho um babaca e ele me acha uma desmerecedora. 

Há diversos números que mostram o preconceito.

O Brasil é o país no topo do ranking dos crimes de homicídio. Em cada dez assassinatos no mundo, um deles é no Brasil — e a maioria deles são jovens, pretos, pobres, mortos a bala. O Brasil tem um LGBT morto a cada 26 horas, liderando essa lista também. 
Do preconceito, surge a hipocrisia. E somos hipócritas em que pensar que, “tudo bem, o corrupto não matou ninguém”, quando ele matou um monte de gente de fome, de falta de atendimento médico, ou tirou a oportunidade de educação, de cultura. Mas ele é rico, bem vestido, cheiroso e não se evolveu em um tiroteio, então ele merece pagar em casa.

Somos hipócritas quando fechamos os olhos diante do fato que a maior parte dos abusos sexuais acontece dentro de casa. 

Que não há problema em fumar e beber, mesmo álcool e cigarro sendo as duas drogas que mais matam (usuário e não-usuários), porque são legalizadas.
Somos hipócritas quando achamos que tudo bem que a renda per capita mensal de uma cidade do Maranhão seja R$ 100, enquanto cada morador de rua gera cinco empregos no terceiro setor, que movimenta R$ 12 bihões por ano — o suficiente para pagar a conta anual de 10 milhões daqueles maranhenses por 12 meses. 
Somos uma sociedade completamente idiota quando elegemos um legislativo que, antes de discutir assuntos como esses, prefere votar a lei que subsidia impostos para equipamentos de golf e que, para isso, mexeu com a crença de um povo que acha que discutir política é compartilhar capas falsas da Veja ou da CartaCapital com manchetes absurdas sobre a Dilma e o Aécio nas redes sociais, como se eles fossem o problema ou a solução dessa vergonha que é o poder público no nosso país.

Entenderam como sou preconceituosa?