Marília

Dia da Consciência Negra e o que temos a aprender com Lima Barreto

Dia da Consciência Negra e o que temos a aprender com Lima Barreto

Hoje é o Dia de Zumbi e da Consciência Negra, uma data importante que celebra a luta da comunidade negra contra a opressão e o racismo no Brasil. Mais conhecido como Dia da Consciência Negra, 20 de novembro marca o dia da morte de Zumbi, importante líder do Quilombo dos Palmares e que resistiu contra a escravidão no Brasil. A data foi escolhida em 1978 em um congresso em São Paulo, promovido pelo Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, sendo instituído oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011.

A data também se mostra uma forma de resistência da comunidade negra ao dia Treze de Maio, data da Lei Áurea que concedeu a liberdade jurídica a mais de trezentos anos de escravidão. Digo jurídica porque o que foi oficialmente chamado de “liberdade” não desembocou em igualdade, sendo que se resumiu ao aprisionamento socioeconômico. A tão esperada liberdade apenas se traduziu em abandono e falta de qualquer tipo de assistência ou apoio para a inserção dessa comunidade negra no modelo econômico e social vigente, que caminhava do regime imperial para o republicano. Deixados à própria sorte, “presos” nessa engendrada rede política, passaram a morar em condições insalubres sem nenhum tipo de amparo ou qualificação aos novos moldes de trabalho.

Durante estes 133 anos da Lei Áurea, várias personalidades negras de diferentes áreas emergiram e se indignaram contra o deliberado descaso do poder público e da sociedade contra esse abandono, que se perpetua até hoje. Poderia aqui neste espaço falar de nomes preciosos para a comunidade negra, como Luiz Gama, José do Patrocínio, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Neusa Santos Souza, Domício Proença Filho, Conceição Evaristo, Elza Soares, Maria Carolina de Jesus, Ruth de Souza, Ivone Lara, Sílvio Almeida, Emicida, entre tantos outros. Os protestos dos negros por mais visibilidade, respeito e inclusão se intensificaram no decorrer de mais de um século, com muitas outras vozes se juntando, porém aqui desejo me ater a um escritor negro que não apenas sentiu muito intensamente a chaga do racismo e da exclusão, como soube usar sua escrita como ferramenta de compreensão, denúncia e combate de uma situação aviltante, sabendo também cobrar da sociedade e dos governantes uma reparação histórica. Trata-se do escritor Lima Barreto.

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), neto de escravizados por parte de pai e mãe, nasceu no Rio de Janeiro apenas sete anos antes da abolição e, tendo a capital da República como vitrine do país, soube como poucos descrever a opressão sofrida pelos negros no país que desejava se desvincular de séculos de escravidão e rumar ao progresso, mas um progresso que não tinha os negros em seus planos. Autor de 17 obras literárias, a maioria publicada postumamente, produzindo também mais de 400 contos e crônicas para revistas e jornais, o escritor denunciou que a escravidão teve apenas um fim burocrático, dando à sociedade branca a falsa ilusão de que a herança escravocrata estava resolvida desde suas origens.

Cursou engenharia na Escola Politécnica sem conseguir se formar por problemas pessoais, depois passou em um concurso público onde se sentia deslocado. Ganhando muito pouco e com responsabilidade de sustentar o pai e os irmãos, escrevia para jornais e revistas para complementar a renda. Morador da periferia, ao mesmo tempo em que conviveu com a elite nos anos de faculdade, adquiriu essa capacidade de leitura social dos dois mundos que estavam cada vez mais divididos no Brasil. O escritor foi um dos pioneiros a alargar o espaço geográfico do Rio de Janeiro, incluindo em suas obras os subúrbios, o trânsito de pessoas, o caminho dos trens. Ao mesmo tempo, falou das penúrias das moradias, a ausência completa do poder público, a falta de emprego digno para os negros, a opressão do patriarcado em cima das mulheres, entre tantos outros temas.

Além de abordar temas para os quais a sociedade não tinha olhos, suas obras tem uma escrita inovadora para a época, pois preferia o uso de uma linguagem coloquial mais próxima do povo, sem os rebuscamentos de outras escolas literárias. Ao selecionar temas espinhosos e não se encaixar no tipo de escrita do período, foi rejeitado pela Academia Brasileira de Letras, pelos escritores da época, além de sofrer cerceamento em todas as frentes, pois não conseguia publicar seus livros, vivendo sempre na mais completa penúria financeira. Precursor do Modernismo, que viria somente no ano de sua morte, em 1922, Lima Barreto inovou e seguiu usando sua escrita como militância, conforme ele mesmo definia.

Em suas crônicas e contos, além de falar de racismo, Lima Barreto teceu as mais variadas críticas, como a perseguição à religiosidade do negro, perseguição à cultura negra (capoeira, música, comemorações de matriz africana, vestimenta), feminicídio, violência sexual, crescimento desordenado dos subúrbios, ausência do poder público, corrupção dos políticos, abandono de crianças, trabalho precário, desemprego e muitos outros.

Estudiosos de Lima Barreto indicam em suas obras literárias um esforço também de falar de si mesmo e de seu sofrimento como negro, morador do subúrbio e oprimido, introduzindo personagens, sejam principais ou coadjuvantes, como sendo seu alter ego. São 17 obras e selecionamos algumas para que o leitor conheça melhor o seu legado.

Em Recordações do escrivão Isaias Caminha, além de mostrar a perversidade do racismo, vemos muitas adversidades que Lima Barreto passou em seu ofício como jornalista, descrevendo o poder dos jornais em manipular notícias.

Lima Barreto em foto de 1914, durante uma internação

Outra obra de grande importância, na verdade uma marco na literatura brasileira, é Clara do Anjos, que traz a primeira protagonista negra da nossa literatura. Fugindo dos estereótipos de outras descrições da mulher negra na época, Lima Barreto mostra como uma adolescente ingênua é seduzida e abandonada grávida por um homem branco de condição superior.

Em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá Lima Barreto mostra muito bem seu estilo descritivo dos moradores da periferia comparando com o centro da cidade. Um trabalho primoroso de um grande observador, mostrando ao leitor as diferenças sociais e como os governantes abandonaram os subúrbios e a população negra ali inserida.

A sua obra mais conhecida, O triste fim de Policarpo Quaresma, é um importante trabalho que se mostra, de certa forma, muito atual, pois é mais voltado às questões de política e poder. Ele bate de frente com o patriotismo exacerbado que esconde, muitas vezes, um pensamento conservador. A obra também foi para os cinemas, em filme de ótima produção que poderá interessar ao leitor.

Indicamos aqui algumas obras literárias que podem esclarecer muito do caminhar da população negra na Primeira República. Obras como as de Lima Barreto tornam-se também uma importante fonte de compreensão daquele período e como a não resolução dos problemas ali apontados desembocaram em muitos dos problemas que hoje vivenciamos, numa sociedade extremamente desigual.

Tendo como recorte a Primeira República, considero que Lima Barreto seja um dos grandes expoentes do pensamento decolonial, pois teceu severas críticas à modernidade e à racionalidade vindas da Europa. O escritor, com sua luta, tentou forçar os políticos a se voltarem para dentro do Brasil, para sua riqueza cultural e enxergarem a população vulnerável ali inserida. Seu trânsito entre a periferia e o centro da cidade o enriqueceu com a capacidade de fazer importantes reflexões e comparações entre esses dois “mundos” que caminhavam em paralelo e só se cruzavam para o negro ser humilhado e explorado.

Lima Barreto também se torna um grande expoente da identidade nacional, pois soube nos descrever a riqueza cultural dessa população negra, seja na música, nos costumes, no lazer, nos jogos, na culinária, na capoeira, nos encontros nos botecos, nas misturas de raças e as gradações de cores negras – praticamente nada passou despercebido ao atento olhar do escritor. Mesmo com esse caldo cultural de grande riqueza, ao qual se orgulhava de pertencer, ele nos revelou que a periferia da cidade e sua gente negra foram escondidas pela história oficial. Em suas obras vemos como os mecanismos de racismo permaneceram e até foram aperfeiçoados pelos governantes, que usaram as teorias raciais como respaldo científico para a exclusão e perseguição da população negra. E, numa data tão importante como a de hoje, falar um pouco do seu legado é também ir à raiz de muitos dos problemas que insistem em nos acompanhar.

Não há como o Brasil avançar como país democrático e respeitado sem fazer essa correção histórica, sem fazer a inserção social dos vulneráveis dando-lhes condições dignas de igualdade de competição. Já havíamos tido alguns avanços em outros governos, porém nos últimos tempos é notório perceber o regresso do pouco que tínhamos, ao mesmo tempo em que casos de racismo eclodem e se intensificam em diversas partes do país, seja entre a própria população, seja com o avanço da militarização sobre os negros. O que se observa é que esses problemas sociais seriam resolvidos com a correção histórica de alargar as políticas afirmativas, de criar mais sistemas de inclusão da população negra.

O Dia da Consciência Negra é o momento de refletirmos sobre essa desigualdade persistente, sobre o racismo e a violência e, no contexto aqui apresentado, ler Lima Barreto nos dá suporte para entendermos os mecanismos de opressão, violência social e política que sempre pairaram sobre os negros. Somente a compreensão de nossa história poderá ensejar mudanças.

Silvana Mansano – Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP de Marília, socióloga e advogada. Endereço eletrônico: [email protected]