Há quase um século, Walter Benjamin definia o “choque” como elemento central da estética dadaísta. E o choque era o tiro de misericórdia na arte tradicional, ou arte “aurática”, conforme a expressão do autor, a já moribunda arte dos museus, socialmente fundada na posse privada dos objetos de arte e, portanto, inacessível às grandes massas populares.
Nessa arte tradicional, a obra de arte era objeto de uma espécie de culto religioso secularizado. A única interação possível entre observador e obra era a da pura contemplação, na qual uma espécie de campo de força intransponível, que ele chamou de “aura”, separava terminantemente o observador, impassível e imperturbável, do objeto artístico sacralizado.
É exatamente essa aura que o dadaísmo tentava liquidar. Para isso, a obra de arte era deslocada da condição de objeto de adoração passiva para tornar-se ”o centro de um escândalo”.
Seu sentido principal era produzir o choque, era escandalizar estética e moralmente o observador, a fim de arrancá-lo violentamente de sua passividade. A partir de então, a estética do choque, ainda que abandonando a virulência original do dadaísmo, fez seu caminho através de numerosas formas de arte, acadêmicas ou não, inclusive no cinema, priorizado por Benjamin.
Na segunda metade do século XX, o grafite traz o princípio estético do choque para as ruas. Não se tratava mais de escandalizar a burguesia frequentadora de museus, mas sim de arrancar os habitantes das grandes cidades de sua usual indiferença e isolamento, sacudi-lo do torpor crônico de consciência em que é arremessado pelo ritmo frenético das metrópoles.
Originalmente ligado a movimentos de contestação, o grafite jamais abandonou o viés crítico e combativo. Quando invade finalmente as ruas das metrópoles brasileiras, nos anos 80, ele se apresenta como o equivalente visual do punk rock, trilha sonora da vida de uma juventude proletária que tentava desesperadamente se furtar a enquadrar-se na dinâmica cruel e impessoal do capitalismo periférico.
Na arte do grafite, a voz dos excluídos e marginalizados se faz ouvir com estridência, nela, tudo aquilo que os poderes constituídos se esforçam por esconder da vista de todos e tudo aquilo que a sociedade recalca e inviabiliza vê a luz do dia de forma esteticamente potencializada. Se o sentido da arte dadá era provocar o escândalo, o do grafite é gerar o incômodo: ele está onde não deveria estar e mostra o que não deveria ser mostrado, e não é apenas pelas alegadas questões de higiene visual que a polícia o combate com tanta violência.
No mural “Inclusão, diversidade e literatura: um encontro necessário”, de Eduardo Kobra, que por decisão da direção da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, ocupa, desde o dia primeiro de abril, a fachada da biblioteca do campus, toda aquela contundência e estridência originais do grafite se reduzem a um eco distante e abafado. Os excluídos estão lá, mas não são os seus rostos o que mais se destaca, pois eles se convertem em meros pretextos para mais uma das incontáveis exibições do virtuosismo do artista na criação de padrões geométricos coloridos, cacoete estilístico que se tornou sua marca registrada.
Os excluídos estão lá, mas sua voz real não se faz ouvir. Estão emudecidos, serenos ou risonhos, como se já habitassem o mundo reconciliado e liberto de suas contradições e violências, ou como se vivessem no mundo mágico das campanhas publicitárias de natal das grandes corporações internacionais.
Na arte pasteurizada e previsível de Kobra, a estética do choque deu lugar à estética do marketing, e se antes o grafite era a tradução visual do punk rock, o seu mural soa como Roberto Carlos interpretando Sex Pistols. (Tivemos sorte de não haver borboletinhas coloridas ou unicórnios – se bem que das pias mãozinhas em pose de oração não pudemos escapar…)
Em todo o caso, o mural retrocede do dadaísmo e ressuscita a aura benjaminiana, materializada no cordão de isolamento que o separa do público.
A própria impressionante carreira internacional do artista depõe contra a autenticidade de sua criação. Se ele é convidado a expor sua arte por poderosas fundações, governos e até pela Onu, é porque se sabe de antemão que ela não atentará contra o bom tom, que não revelará nada que realmente possa melindrar aqueles que têm dinheiro suficiente para encomendar seu trabalho.
Com sua exposição na Onu, Kobra se torna o maior exemplo do excluído incluído, pois não há maior signo de inclusão do que expor no lugar onde os maiores causadores da exclusão no mundo se reúnem pra tramar seus negócios.
Convém, aliás, que nos detenhamos um pouco ante esse conceito de “inclusão”. O que ele sugere? Em última análise, que já vivemos praticamente no melhor dos mundos, que nossa sociedade não possui problemas estruturais e é a única forma possível de organização humana.
Seu único problema é que muitos estão excluídos dela, de maneira que o que se tem a fazer é somente promover sua inclusão. Feito isso, tudo se resolveria e viveríamos o paraíso na Terra.
Ocorre porém que a inclusão das populações marginalizadas e periféricas é impossível nos marcos sociais em que vivemos. Pois se todas essas populações fossem realmente incluídas, ou seja, conquistassem efetivamente o direito a uma existência dignamente humana, em breve não haveria mais força de trabalho barata a ser explorada em volume suficiente para manter o ritmo da acumulação e concentração de riqueza nos países centrais, o que impediria a subsistência dessa sociedade tal como ela se estrutura atualmente.
É exatamente essa necessidade de exploração da força de trabalho – que na periferia do capitalismo se torna inevitavelmente superexploração – o que mantém as populações negras confinadas nas favelas cariocas e paulistas, a espera da próxima operação policial de extermínio; o que faz com que nossos índios percam a cada dia o espaço de que necessitam para viver e que sejam brutalizados pelas incursões dos madeireiros e envenenados pelo mercúrio do garimpo; é ela também que obriga as mulheres brasileiras a ter jornada tripla de trabalho e receberem salários aviltantes. Mas de tudo disso não se vê qualquer vestígio no mural de Eduardo Kobra.
E pra quê falar disso? Por que poluir tão edificante obra com temas antiquados como luta de classes e exploração do trabalho? Isso lá é tema pra mostrar às criancinhas que, segundo alegação da direção da Faculdade, irão visitar regularmente o mural? E o que diria aquela outra turminha da pesada, lá de Amsterdã, Bruxelas, Nova Yorque, tão preocupada com a inclusão (de lucros) e com as letras (de câmbio)?
E por falar em letras, o que diria aquela senhorinha simpática e risonha, amiga próxima e confidente desse grandessíssimo filho da pátria que foi o marechal Castelo Branco (“homem exageradamente ético”, segundo suas palavras), acintosamente homenageada no mural?
Ninguém discute o mérito literário de Rachel de Queiroz, e seus livros terão sempre lugar em qualquer acervo de literatura brasileira. Mas, aqui pra nós, descobrir o nome de uma conspiradora e entusiasta do golpe de 64 encimando o umbral de nosso “templo do saber” exatamente no dia em que a nefasta quartelada completava 60 anos já foi um pouco “demais pra cabeça”. Pelo menos desse vexame podíamos ter sido poupados…
E por falar em homenagens, é curioso observar que a prata da casa unespiana não foi incluída nem nas homenagens (aliás, a comunidade acadêmica sequer foi convidada para a inauguração). E temos escritores e escritoras entre nós!
Tampouco nos falta gente profundamente envolvida com a causa das populações excluídas. Olhando uma figura central do mural, que mostra o rosto encarquilhado de uma anciã indígena, não pude deixar de me lembrar de um querido e saudoso amigo, nosso companheiro de alegrias e desventuras acadêmicas, cuja vida e produção acadêmica foi totalmente consumida por seu amor aos índios brasileiros.
Viveu entre eles por dez anos, fez da causa deles a causa de sua vida e do sofrimento deles o seu próprio sofrimento. Dele com certeza se pode dizer o que Darcy Ribeiro disse de Glauber Rocha: morreu de Brasil! E é doloroso lembrar que um intelectual valoroso e engajado como ele nos tenha deixado nas condições materiais em que nos deixou. Morreu de Brasil, de Seduc, de Capes, de Cnpq, de Unesp. (Imagine o que esse homem poderia ter realizado se tivesse aprovado um projeto de trezentos mil reais!)
Se a idéia era mesmo fazer refletir sobre a exclusão e ao mesmo tempo comemorar nossos 65 anos, fico pensando se não teria sido melhor se, ao invés de fechar a biblioteca por um mês, simplesmente a rebatizassem.
E ao invés de inaugurar um mural caríssimo se tivesse apenas descerrado uma modesta plaquinha com os dizeres: “Biblioteca Universitária Sérgio Domingues Krahô”. Não seria tão espetacular, tão “aurático”, mas honraria muito mais a nossa história coletiva.
Márcio Benchimol, presidente da Adunesp-Marília,