Na minha vida acadêmica, aprendi que um jurista deve estar sempre comprometido com a coerência e com a cientificidade. Isso não significa que sejamos absolutamente neutros para analisar os fatos jurídicos, mas precisamos ter um compromisso com a vigilância epistemológica para não nos dobrarmos às falas que buscam agradar públicos específicos. E, vejo, com grande lamentação, como isso se torna um imenso desafio aos juristas ideológicos, que desenham suas narrativas conforme uma direção previamente determinada e o público que se comprometeram agradar. Noutras palavras, primeiro escolhem o seu destino e depois constroem a estrada. Não sou esse tipo de jurista. Os fatos que aqui analiso o faço pelo viés científico, sem preocupações acerca de quem com eles concordará. Ou melhor, sobre quem concordará com a minha visão acadêmica dos fatos jurídicos. O mais importante: manter a coerência independentemente de quem sejam as pessoas atingidas pelos fatos.
Proponho analisar cinco situações: o alcance da imunidade material ou inviolabilidade por opiniões, palavras e votos; o dever de imparcialidade no julgamento; a concessão de graça pelo Presidente da República e seu momento; eventual controle do decreto presidencial; efeitos da concessão.
Por evidente, estamos diante de uma hipótese em que há um inter-relacionamento entre os direitos penal, processual penal, administrativo e constitucional.
Uma primeira questão diz respeito à imunidade material de Deputados e Senadores, prevista no artigo 53 da Constituição: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. A imunidade material advém da cláusula inglesa do freedom of speech. Ou seja, para que o Deputado ou Senador exerça de forma combativa e sem temor a sua função, a inviolabilidade civil e penal, serve a lhe garantir tal liberdade. Dentro da Casa legislativa pressupõe que o discurso guarde conexão com a função; fora da Casa, deve restar demonstrada a ligação com sua função política. Quando o Deputado critica outros Poderes, mesmo quando o faz de forma mais agressiva e, até mesmo, ofensiva, albergar-se-ia, teoricamente, em sua imunidade.
De fato, nenhuma imunidade é absoluta, mas a lógica de que por se tratar de fato típico previsto na Lei de Segurança Nacional seria suficiente para afastar a imunidade é bastante tacanha. A relativização constante do princípio é medida que, embora possa ser compreendida sob o prisma do abuso de direito, é extremamente perigosa, pois a cada decisão corre-se o risco de corroer a imunidade. Reitera-se: a imunidade não deve servir de manto protetor para abusos, mas o desenho de limites pelo STF não é indene de riscos e críticas. Nas expressões do Deputado sob questionamento, a jurisprudência do STF tem admitido a relativização da imunidade e o processamento cível e penal.
Aliás, nesta semana chamou a atenção o recebimento de uma ação penal pela 2ª Turma do STF contra o Senador Jorge Kajuru, afastando a proteção da imunidade, para aceitar o processamento pelos crimes de difamação e injúria. Em postagens realizadas em 2019, o Senador afirmou que seu colega Vanderlan Cardoso seria “inútil”, “idiota” e utilizaria o mandato para “fazer negócios”. Além disso, manifestou-se sobre o ex-Deputado Federal Alexandre Baldy enquanto “vigarista” e que “integraria uma quadrilha”. O resultado da decisão que admitiu a ação fora 3 a 2, o que deixa bem claro que não existe, nem de perto, um consenso dentro da Corte sobre os limites da imunidade. Nos votos, aliás, resta claro que os Ministros divergem sobre qual seria a “jurisprudência do STF”.
Uma segunda questão diz respeito ao julgamento e a imparcialidade do juiz. Como é notório, as expressões do Deputado dirigiram-se de forma geral ao STF e de forma específica ao Ministro Alexandre de Moraes, o qual fora relator do processo. Pelas manifestações genéricas à Corte, fica realmente difícil pensar em uma suspeição geral, eis que não haveria solução para julgamento e também não haveria ofensas diretas a todos os Ministros. Mas no caso do relator, a situação é realmente preocupante, pois parece-me que há nítida quebra do dever de imparcialidade quando a vítima direta das ofensas é ao mesmo tempo julgador, inclusive com o papel relevantíssimo de relator. Há, inclusive, uma série de quatro artigos muito interessantes dos Professores Virgílio Afonso da Silva, Daniel dos Santos Almeida e André Martins Bogossian, publicados na Revista de Estudos Institucionais, sobre a preponderância do voto do relator, como ocorrera no caso em questão, e que certamente merecem leitura.
Em minha opinião, em face da importância do papel do relator e de sua inevitável parcialidade, não deveria ter o Ministro Alexandre de Moraes participado nem do inquérito e nem do julgamento da ação penal, bem como de seus desdobramentos diretos e indiretos.
Com o resultado do julgamento, e entramos em um terceiro ponto, o Presidente da República concedeu graça (indulto individual) ao condenado, antes mesmo do trânsito em julgado. Neste ponto, nasceram dois grandes questionamentos: se o Presidente poderia tê-lo feito; se o momento era adequado.
A concessão de graça não é apenas uma prerrogativa do Presidente (art. 84, XII, CF), mas antes um direito fundamental. Poucos juristas se apercebem dessa característica, implícita na cláusula do artigo 5º, XLIII, CF, quando a Constituição apenas veda a concessão de graça ou anistia para a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Logo, é direito do condenado nos demais casos, se assim decidir o Executivo (graça) ou o Legislativo (anistia).
E a graça, em se tratando de prerrogativa do Presidente, por ele será oportunizada quando entender ser o condenado merecedor. Claro, desde que preenchidos os requisitos formais, os quais devem ser perquiridos na Lei de Execuções Penais, por ser mais nova, e não no Código de Processo Penal.
De acordo com o artigo 188 da LEP, o indulto individual poderá ser provocado por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa. O artigo 189 ainda determina que a “petição do indulto, acompanhada dos documentos que a instruírem, será entregue ao Conselho Penitenciário, para a elaboração de parecer e posterior encaminhamento ao Ministério da Justiça”. Em seguida, o “Conselho Penitenciário, à vista dos autos do processo e do prontuário, promoverá as diligências que entender necessárias e fará, em relatório, a narração do ilícito penal e dos fundamentos da sentença condenatória, a exposição dos antecedentes do condenado e do procedimento deste depois da prisão, emitindo seu parecer sobre o mérito do pedido e esclarecendo qualquer formalidade ou circunstâncias omitidas na petição”. Por fim, nos termos do artigo 191, LEP, o pedido será processado “no Ministério da Justiça com documentos e o relatório do Conselho Penitenciário” e “a petição será submetida a despacho do Presidente da República, a quem serão presentes os autos do processo ou a certidão de qualquer de suas peças, se ele o determinar”.
Perceba-se que a lei exige um trâmite formal, ainda que a decisão sobre a concessão ou não caiba ao Presidente. Mas o fato é que a LEP afastou a possibilidade da concessão de indulto individual de ofício, como previa o artigo 734 do CPP.
Neste ponto, a lei também sinaliza sobre o momento de sua concessão, ao afirmar no artigo 192 que, concedido o indulto, o Juiz declarará extinta a pena ou ajustará os termos da execução. Portanto, apenas com a existência de “pena definitiva”, isto é, com o trânsito em julgado, poderia haver movimentação no sentido de concessão de indulto.
Formalmente, a concessão antecipada e de ofício, como fizera o Presidente da República, não poderia ser admitida e tudo indica que será o caminho utilizado para o Supremo Tribunal Federal para anular o decreto presidencial.
Diferente, no entanto, é a questão material. É equivocado o pensamento de que a graça possa ter seu mérito controlado pelo Judiciário, pois tornaria este um revisor do mérito do Executivo, função não concedida pela Constituição. Também não se deve admitir a alegação de que a graça violaria o princípio da impessoalidade, pois a pessoalidade é inerente ao instituto e, conforme visto, admitida pela Constituição enquanto uma exceção do princípio administrativo.
Claro que, como todo ato administrativo, o decreto presidencial está submetido aos princípios administrativos gerais e aqueles direcionados aos atos administrativos, desde que devidamente ajustados, como no caso da impessoalidade acima descrito. Assim, é intrínseca a necessidade de motivação, bem como a ausência de desvio de finalidade, requisito que, por sua subjetividade, comporta interpretações diversas. Noutras palavras, a anulação por desvio de finalidade imprescinde da demonstração inequívoca de que efetivamente ocorrera o desvio. Do contrário, há presunção em prol do ato administrativo acerca do cumprimento dos requisitos legais e constitucionais. Mormente em casos de concessão de indulto – individual ou coletivo – em que a escolha dos motivos cabe ao próprio Presidente. Vale lembrar que essa fora a posição do próprio Supremo Tribunal Federal ao analisar o decreto de indulto concedido pelo Presidente Michel Temer, em dezembro de 2017, e que atingia condenados por corrupção (Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.874).
Portanto, embora não seja um ato completamente imune ao controle jurisdicional, deve restar muito clara a violação de qualquer dos princípios e exigências que norteiam o ato administrativo e a Administração Pública.
Por derradeiro, quanto aos efeitos da concessão do indulto individual, o artigo 192 da Lei de Execuções Penais sinaliza que a graça apenas extingue ou comuta a execução da pena. Assim, portanto, possui apenas efeitos executórios penais, não servindo, como a anistia, para apagar todos os rastros do crime. Significa dizer que a eventual perda do cargo – a ser deliberada pela Câmara dos Deputados -, bem como a suspensão de direitos políticos e efeitos cíveis não estariam abrangidos pela graça.
As questões e o tensionamento políticos, deixo, contudo, aos analistas políticos.