Marília

Penso, logo estou certo

Jair Pinheiro (*)

Brotou e se expande como erva daninha em terra fértil um novo tipo de intelectual coletivo; ensimesmado, ele dispensa demonstrações, aliás, as despreza do fundo do seu coração. Basta-lhe suas próprias convicções. A figura desse intelectual coletivo pode ser facilmente encontrada nas redes sociais, nos portais de notícias, nas páginas do leitor da imprensa escrita e lugares afins.

Como reconhecê-lo?

Simples, pela indiferença ostensiva e orgulhosa a qualquer dado ou argumento lógico contido na peça (reportagem, artigo de opinião, posts, etc., não importa) que estimulou sua reação irada. Ante qualquer dado ou argumento lógico exposto, talvez por não tê-los também, esse intelectual desqualifica aquele de quem discorda com juízo moral sumário, reduzindo toda a complexidade social à luta entre o bem e o mal.

O passo seguinte é reiterar sua convicção de que tudo não passa de uma conspiração da esquerda contra as pessoas de bem, as autoridades e a família; reiteração normalmente precedida por frases típicas: “queria ver…”, “por que ele não…”, “quando ele vai…”, frases introdutórias para desancar o incauto autor do argumento e/ou responsável pelos dados. Qualquer tentativa do incauto de se explicar será interpretada como uma confissão de culpa: é mesmo um conspirador.

“Penso, logo estou certo”, sem qualquer mediação conceitual, é a divisa desse intelectual. Inútil, portanto, opor-lhe o contraditório, este seu ilustre desconhecido. Seu argumento está sempre-já pronto, disponível para ser esgrimido a qualquer tempo contra tudo e todos que não reiterem suas convicções.

A presença desse intelectual no debate público seria apenas uma cena folclórica, dessas que provocam risos condescendentes de tolerância com aqueles que não dominam as regras do jogo, mas na atual conjuntura eles parecem se bater pelo domínio do jogo, pelo menos essa é uma hipótese, uma vez que os dados disponíveis ainda não permitem uma afirmação segura.

Alguns indícios que permitem levantar a hipótese: 1) suas manifestações escritas ou verbais identificam costumeiramente um ou mais partidos de esquerda como o centro da suposta conspiração, como se dessem um recado de que estão à procura de um partido de direita (fascista?); 2) já há algum tempo vários partidos localizados à direita do espectro ideológico têm buscado incorporar à sua propaganda a tese da conspiração (ou assemelhada) insistentemente alardeada por este intelectual; 4) alguns veículos de comunicação a incorporam igualmente e; 5) por fim, a frequência, a presença ostensiva e o número de manifestações desse gênero permitem levantar dúvida quanto à sua espontaneidade, parecendo-se mais com uma ação concertada.

Numa conjuntura caracterizada por 1) uma crise que ameaça jogar a parcela mais vulnerável da classe média no padrão periférico, onde já se encontra a maior parte da classe trabalhadora e, a parte mais vulnerável desta, para algum lugar abaixo da linha da pobreza; 2) pela transformação do grave problema da corrupção em pauta única pela mídia, suspendendo todo debate sobre o país que queremos, reduzindo a complexidade dos problemas nacionais à ideia tosca de que basta substituir uma pessoa; e, 3) pela adoção país afora do método policial das ditaduras de forjar provas para enquadrar militantes sociais no código penal, nossos novos presos políticos; numa conjuntura assim, o encontro das teses desse intelectual com um partido capaz de se viabilizar eleitoralmente nos levará de volta à década de 1930.

Jair Pinheiro é professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, Câmpus de Marília.