O lá.

O lugar da mulher é  sempre lá.

Quando ela acredita que está alcançando,  a meta é  dobrada.

Li em algum local que a Kim Kardashian disse que comeria cocô todo dia para permanecer magra.

A mulher comum, eu, tu, vós.

 A que pega ônibus lotado diariamente, que trabalha fora e dentro de casa, que estuda, cuida de alguém, não  teria condições nunca de chegar lá. 

O lá já  foi um corpo mais roliço,  curvilíneo,  voluptuoso.

 Já  foi magro, poucas curvas, pouca gordura.

 Foi o corpo trabalhado em exercícios,  frango e batata-doce e uma dose extra de hormônio.

O lá anda, modifica, mas nós,  reles mortais,  não  chegamos nem perto.

E olha que tentamos, hein?

Lá  vamos nós,  desgraçadamente cansadas, dançar,  pular, suar, disputar aparelhos quase aos tapas com os outros.

Bora contar as calorias, gramas de proteínas,  carboidratos.

Ok, o corpo está legal, vamos arrumar esse rosto aí,  preenchimentos, Botox, colágeno

Celulite? Deus me livre. Paolla Oliveira tem celulite? Anitta tem?

Passamos uma grande parte, senão  toda ela, da vida querendo um lugar que sempre muda.

Deixamos de viver o bom, trivial, de viajar, namorar, tirar fotos, sorri.

Vamos nos anulando para caber numa roupa que muda de medidas a cada estação.

Nos comparamos com quem tem acesso a tudo e que, muitas vezes, nem a própria comida controla.

Há  um nutricionista, um chefe e ela  apenas come o que vem.

Fazer mercado, feira?

Ficar sem dinheiro no final do mês,  tendo que renunciar a certa alimentação,  nunca ocorrerá com essas pessoas.

Vamos entrando numa espiral sem fim de comparações, anulações.

Não  tenho mais um parâmetro  concreto, não  me olho no espelho e enxergo a verdade.

Vejo a distorção do que consumo nas mídias, corpos e rostos photoshapados que teimo em acreditar que são  reais.

Brigo com a barriga e suas dobrinhas, as pernas roliças e com celulites,  com o bumbum estriado.

Não  conseguimos mais lidar com o real, somos enganados e gostamos do engodo.

E vamos caminhando nesse universo inventado, insatisfeitas, odiosas conosco e com outras mulheres.

 Culpabilizando-as quando não se entregam a essa lógica  pervertida.

Que desleixo, não  se depila, não  faz a unha, não  pinta esse cabelo.

 Ah, poderia emagrecer um pouquinho.

Não  é  permitido a outra mulher se portar segundo a sua própria vontade, mas é imperativo obedecer à lógica  do outro.

A ser outra que não  ela.

Essa semana bombou nas redes sociais a discussão sobre a roupa da atriz Débora Secco, que fora convidada para comentar um jogo da Copa do Mundo.

A moça teve a pachorra de ir ao programa com um cropped e a calcinha à mostra.

Venhamos e convenhamos que, dificilmente,  essas atrizes escolhem o que vestem.

 Há  sempre um consultor de imagem, empresário e por aí vai para ditar o que deve ou não  usar.

Ou seja, houve um propósito no que ela vestiu.

Mas Débora Secco não  escapou do lá,  minha gente.

 Nenhuma mulher escapa.

Débora foi julgada por homens e mulheres devido a uma roupa.

O ano é  2022 e nós  ainda julgamos todo o comportamento feminino.

Questionaram o fato da mulher de quarenta anos usar uma roupa dessas para buscar apreciação masculina.

O lá da Débora não é  o meu.

A atriz é  padronizada segundo os moldes do consumo, mas ela também  tem seu lá.

O lá que aproxima uma mulher comum, como eu, da atriz famosa é  o lá onde todos os homens conhecem.

Pisaram esse lugar inúmeras vezes, fincaram bandeiras e até nomearam com nomes de homens ilustres.

O lá é  um lugar onde a barriga de chope  é  celebrada, o cabelo grisalho aplaudido.

 Onde usar meia até  a canela com uma bermuda de sarja é  permitido.

Onde homens de beleza mediana, ou nem isso, julgam uma mulher para além  do seu poder de atração como se tivesse algum direito.

O lá tem proprietário com registro em cartório e lavrado a ata.

O lá é  inalcançável a Kim Kardashian, à Débora Secco, a ti, a mim.

O lá é  o endereço de homens barrigudos, sentados em suas poltronas, tomando uma cerveja e petiscando salame.

O lá é  território de homens.