Estou no hospital sentada em frente a um corredor que se cruza possibilitando três caminhos diferentes.
Pessoas desfilam à minha frente, algumas empurradas por cadeiras de rodas, macas. Outras empurrando vassouras, rodos, carrinhos empilhados de roupas sujas.
Médicos, aspirantes a médicos, enfermeiras, faxineiros, pessoal administrativo e doentes, os mais variados, desde aqueles amarelos e apáticos aos corados e palradores que adoram propagar suas dores e competir por uma moléstia pior do que a de seu ouvinte.
Há alguns anos em minha aula de Antropologia,a professora disse que o corpo conta uma história.
Não a história comum do desgaste, da velhice e do mau uso, para essa há uma área específica na Fisioterapia que tem se aprofundado, mas a história socioeconômica e cultural.
E tem. O nosso corpo transmite não só as dores físicas mas as psicológicas, morais.
Percebam a diferença entre um médico andando e uma pessoa que limpa o chão.
O médico, peito aberto, cabeça erguida, anda com braços leves, pernas ocupando o espaço que lhe é devido.
Em contrapartida, uma pessoa que trabalha nesses serviços que os torna invisíveis socialmente, possuem ombro curvado, cabeça e olhar de quem já entra pedindo desculpas, as pernas e braços mantém- se encostados ao corpo.
É como se, sem querer, ou de forma subliminar, fossem colocados em ” seu devido lugar”, se não com a voz, com a presença daqueles que são considerados seus superiores.
O corpo conta as mais variadas histórias. Até o jeito de andar é diferente.
A história do trabalhador que começou lá com seus 12/14 anos num trabalho insalubre.
De quantas vezes precisou abaixar para pegar um peso que seu corpo não aguentava, mas que seu estômago e boca pediam.
Dos assédios morais sofridos, cabeça baixa, ombro baixo.
É um ” desculpe, Senhor, não quero atrapalhar, se possível desconsidere minha existência”.
Já li e ouvi relatos de meninas e mulheres que ficaram corcundas por terem seios grandes, se envergonharem dos assédios nas ruas e se curvarem para não chamar atenção.
Assim como de mulheres que engordaram na intenção de não chamar a atenção evitando assim um novo abuso sexual. Como se a culpa pela violência tivesse correlação com sua aparência.
Transmitimos através de nossa forma de andar, posição do corpo a história que nos foi colocada e as dores (físicas e morais) que sofremos.
Todos nós contamos histórias o tempo todo, mesmo quando estamos em silêncio.
Aquele corredor estava cheio de histórias, algumas mais fáceis de gente criada a leite Ninho, outras mais difíceis, da mesma gente, um pouco diferente, que nem tinha chegado perto do leite Ninho.
De quem baixou a cabeça demais, a daqueles que ergueram em exagero.
De pessoas que perderam, que estavam perdidas e de gente que estava ali, naquele momento mesmo, se perdendo.
Fiquei olhando os transeuntes e pensando que história eu ando contando com meu corpo.
Será que transmito a história real, carregada de dificuldades e dores vencidas?
Será que me olham e pensam que minha alimentação foi a base de Leite Ninho e danoninho?
Estava ali observando a dor dos outros, fingindo que a minha era de menor importância ou só percebendo mesmo que as dores não se sobrepõem.
Quando dói, dói em qualquer um e dói de qualquer jeito.
Tentava desvendar a dor nos olhos, nos ombros, na senhorinha na cadeira de rodas de olhar absorto.
Das moças tagarelas, de pele clara e sorriso fácil que ali passavam.
Procuramos a dor no outro para não nos sentirmos privilegiados com a nossa.
O eu também traz um alívio até na desgraça.
Se não para não se sentir só, ao menos para receber o abraço de quem entende as dores carregadas no corpo e na alma.
Saber que não ganhamos o bilhete premiado do infortúnio nos traz alívio e um pouco de esperança.
Se a vida dói, ela dói para todos.
Se não no bico de papagaio, nas pernas doidas de um dia de trabalho.