Peça curinga, a culpa.

Sábado chuvoso, uma cólica infernal me prende a cama.

Procuro entre livros, cadernos, maquiagens, canetas, lápis, um comprimido para aliviar as dores de cabeça.

Volto para a cama, em posição fetal, já entregando a Deus, porque não sei mais como lidar com o poder do meu útero.

O telefone vibra, era a mensagem de um amigo me questionando se vi a publicação da Valesca Popozuda. Não sei se ela continua sendo denominada por seu glúteo avantajado.

Respondo que não vi, ele me envia o print e diz ter lembrado de mim ao ler o que ela escreveu.

Valesca falava sobre Mirtes e Miguel, mas falava de sua infância pobre e das inúmeras vezes que precisou ir ao trabalho de sua mãe.

No Brasil, segundo o IBGE, 45% das famílias são chefiadas por mulheres e de acordo com o último Censo Escolar realizado  pelo Conselho Nacional de Justiça- CNJ e divulgado em 2013 há 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento.

Ao saber da morte do Miguel, vários questionamentos perpassaram, mas não li ou ouvi em lugar nenhum alguém perguntando onde estava o pai desse menino.

Li pouco sobre a vida e história do Miguel e sua família, na tentativa de proteger-me do adoecimento diante de tanta crueldade.

Mas Miguel era criado por duas mulheres, a mãe e a avó.

No dia de sua morte, a mãe não pode deixar a criança com a avó porque a mesma tinha uma consulta médica.

Minha mãe não nos levava aos seus empregos porque não trabalhava como empregada doméstica. Trabalhava em micro e pequenas empresas. O que ela fazia? Confiava a Deus a nossa vida, a minha de 8 anos e de minha irmã de 7.

Tenho absoluta convicção de que se for questionada sobre isso ela vai dizer que preferia ter nos levado.

Com o advento dessa pandemia que nos deixa entre atônitos, incrédulos, perdidos,  e com a retomada gradual da Economia, muitas mulheres estão trabalhando em seus lares, cuidando dos filhos, ajudando com as tarefas pedagógicas e cuidando do serviço doméstico.

Onde estão os pais?

Outras tantas precisam retomar o seu trabalho in loco e não tem com quem deixar seus filhos. Escolas e creches fechadas. A maioria não tem suporte financeiro para pagar alguém para cuidar de seu filho enquanto trabalha e, mesmo se tivesse, estamos numa pandemia.

Aliás, estamos em várias pandemias há muito tempo. Mas aqui me refiro ao abandono paterno. Até quando iremos normalizar mães solos sobrecarregadas com a rotina de sustentar uma casa, cuidar e educar filhos, lidar com tarefas domésticas e com a solidão de ter que ser polivalente e múltipla em tudo?

A mãe guerreira também cansa, chora, quer desistir ou faz como a minha, com seus 60 e pouco, desgastada pela vida, pelas inconstantes humilhações em trabalhos insalubres, com o corpo marcado por trabalhos repetitivos que vão desgastando as engrenagens corporais, resmunga as dores sentidas no corpo e aquelas que carrega na alma.

Pode até ser bonito falar, ela nos criou sozinha, mas o peso social que tem tal afirmação?

Uma mulher com filhos se obriga a aceitar os trabalhos mais inconvenientes para que sua cria não passe fome, passa por assédios, morais, físicos.

Tem dificuldade em se relacionar com outras pessoas, por medo próprio, pedófilos, estupradores, abusadores.

Por estigma social, afinal uma mãe solo só pode está procurando um pai para seu filho.

Uma mãe solo deixa de ser mulher e ter desejos?

Passou o momento, é mais que démodé e retrógrado, essa fuga masculina de suas responsabilidades.

Não sei de quem entra na conta, talvez uma análise psicanalítica ajude, mas nós, sociedade, precisamos educar nossos meninos para que assumam seus atos.

Sejam eles quais forem.

As mulheres não podem e nem devem ser responsabilizadas e culpabilizadas por uma equação que tem a divisão como sua máxima e não a subtração.

Repito novamente, desconheço a história de Miguel. Não li sobre seu pai, li sobre Mirtes.

Mais uma mãe que tem que se desdobrar para criar um filho. Se o pai tivesse levado o filho ao trabalho e ocorresse o mesmo nos perguntaríamos, cadê a mãe dessa criança.

Não importaria se dividissem a cada 15 dias  a guarda da criança, se ela desse presentes, se tirasse fotos e dissesse que amava o filho. Nós perguntaríamos o porquê que essa mãe não estava com a criança.

A conta tem sido da mulher na concepção, na procriação e no resto da vida. A culpa tem sempre um endereço certo e esse endereço carrega dois cromossomos iguais. A responsabilidade é da mulher e a culpa é substantivo que só veste quem pari.

O abandono desconhece sentimento.