Ontem, depois de um dia estafante de trabalho, em que fiz um passeio pelos gêneros hortifrutis entre descascar abacaxis e pepinos, chego em minha casa e minha mãe, com aquele jeito próprio de mãe, de quem adivinha a dor do filho mas não consegue nomear, me fez a seguinte indagação:
Filha, você tá triste?
Mãe, eu estou triste!
Estou triste porque acabei de saber que você não irá se aposentar agora, as dificuldades aumentaram com a Reforma da Previdência.
Estou triste porque você trabalha desde os 15 anos e tem poucos registros dessa história de labuta e sofrimento em que a sua mão de obra foi explorada e você, provavelmente, não irá usufruir de um direito mais que merecido.
Ah, estou assim também porque aquele que abandonou três filhos com uma mulher semianalfabeta, que precisou trabalhar como faxineira, empregada doméstica, sofreu inúmeras humilhações. Ele, mãe, conseguiu se aposentar, você não.
Estou triste porque o mundo é injusto e essa lei da semeadura nunca vem, ou vem de forma torta.
Estou triste porque trabalho desde os 14 anos por causa de um abandono paterno, você precisava de minha ajuda financeira e tive que encarar o mercado de trabalho ainda muito nova.
Estou triste porque fui assediada no trabalho com apenas 14 anos por um cara que tinha uma filha da minha idade e que me pressionou contra a porta tentando me beijar e se esfregar em mim.
Ah, mãe, eu não pude abandonar aquele trabalho, você precisava de minha ajuda em casa.
Me entristeço, minha mãe, porque as investidas sexuais desse homem continuaram e me senti muitas vezes humilhada e, acredite, mãe, culpada pelo desejo arbitrário e nojento de um homem que tinha que me respeitar.
Estou triste também porque fui trabalhar como secretária de um juiz, mãe, um juiz, e esse cara que devia zelar pela lei e pelo respeito a condição do outro, ele, mãe, ele me jogou contra a parede, e sim, ele se esfregou em mim e quis me beijar.
Eu tive que sair do trabalho, mãe, lembra? Eu era o arrimo de nossa casa e passamos necessidades múltiplas porque esse juiz me disse que não conseguia se controlar perto de mim.
Ai, mãe, é triste, mas estou cansada de estudar tanto, ler tanto e está num subemprego e, pior, preciso agradecer por ele porque tem milhões de brasileiros que gostariam de está no meu lugar.
Estou triste porque não posso me entristecer porque tem sempre alguém pior que eu, seja na saúde, no trabalho ou em qualquer coisa em que eu me pronunciar.
Estou triste porque não aguento mais ser responsável o tempo todo e não me permitir loucuras, desde a adolescência, mãe, eu não posso.
Estou triste por todas relações amorosas que tive em que os caras foram mais do mesmo, com uma masculinidade padrão e doentia, onde a mentira, o engano, as humilhações são formas utilizadas por eles para corroborar ou reafirmar algo que nunca foi bonito.
Estou triste porque amei alguns deles, me entristeço também, porque sinto saudade de alguns deles.
Estou triste porque me sinto só, eu sei, mãe, que sou independente, que me viro sozinha e que não preciso de homem.
Mãe, não estou falando de homens. Falo da solidão de envelhecer e escolher um caminho que vai na contramão das relações sociais. Sou mulher, mãe, e escolhi ficar só para não me submeter a relações tais quais aquelas que acabei de mencionar a você.
Escolhi também, mãe, não ter filhos. Escolhi ser diferente, e fico triste, mãe, porque eu pude escolher, mas existem inúmeras mulheres que nem sabem que possuem escolhas.
Ai, mãe, eu estou muito triste! Pela soma das dores, pela soma das responsabilidades, por lidar com uma sociedade tão doente e parasitária que tira tanto da gente.
Estou triste mãe, pelas pessoas que morreram de frio essa semana, por aquelas que foram metralhadas voltando para casa junto com sua família, pelos meninos que morrem diuturnamente porque possuem uma cor que querem extirpar.
Ando triste pelas mulheres que morreram esse ano pelas mãos dos caras que elas amaram, entregaram-se, acreditaram.
Eu ando tão triste, pelos estupros, aquela moça que foi estuprada por policiais, mãe, a senhora viu? É, mãe, não dá pra confiar em mais ninguém mesmo.
A senhora viu a notícia do rapaz que jogou ácido na ex mulher e disse que só queria dar um susto?
Ah, mãe, eu deixei de confiar em homens, sempre acho que eles estão querendo me matar ou machucar emocionalmente.
Mãe, eu estou triste porque amo alguém e não sou correspondida, estou triste porque sinto saudades de uma mentira, sim, mãe, uma mentira!
Eu te pergunto, mãe, a troco de quê se engana alguém numa relação amorosa? É imaturidade,mau caráter ou aquele padrão masculino que mencionei acima?
Ah, mãe, eu não sei. Eu só estou triste, muito triste.
Eu poderia ter dito tudo isso à minha mãe, no entanto só olhei em seus olhos, sorri um sorriso de quem pede desculpas pela própria existência e respondi.
-Não, mãe, é só cansaço…
Me levantei e fui tomar banho entoando “por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir,por me deixar respirar, por me deixar existir,Deus lhe pague”.
É só cansaço…