Num país longínquo e habitado por seres animados (espertalhões, na verdade), tinha magos que fariam a Alice do País das Maravilhas  (de Lewis Carroll) parecer com alguém que sofre de paralisia cerebral.

A formiga não tinha celular e nem Facebook, mas era feliz com seus muitos livros e era trabalhadora. O lado ruim é que privilegiava os amigos em detrimento de outros mais capazes. Na verdade, a formiga era do tipo saúva.

A cigarra, ao contrário, tinha todos os penduricalhos eletrônicos providos pela alta tecnologia de comunicação. Naquela época, chama-se essa parafernália de telemática. Também trabalhava, ainda que fosse crítica do seu próprio modo de trabalhar. Não era autocrítica, pois fazia críticas ao sistema geral do trabalho.

A formiga assistia TV – um canal em especial – e lia revistas: uma era especialíssima. Veja você, daí tirava as informações que julgava mais importantes para reger sua vida. Como trabalhava muito, sempre juntava uma graninha no final do mês e assim aplicava no grande mercado de especulações. O único “mercado das almas” permitido no reino.

A cigarra, sempre crítica e antenada com o mundo lá fora, postava ou repassava mensagens, tuitava (do inglês Tweetar) como “passarinho que canta bastante”.

A comunicação das duas, é claro, nunca se encontrava afinada. Havia tons acima ou abaixo, quando tinha melodia, faltava letra – e vice-versa. Não dava coro, como se diz. E nem entoava, como se recitava no passado do vozinho das duas.

O mundo arcaico de uma se chocava com a modernidade da outra. No final das contas, nem se esforçavam mais para falar ou cantar juntas. Até porque a formiga tinha uma boca dura demais e isto lhe impedia que tivesse boa embocadura.

A formiga, descontente, queria retomar o controle das coisas. Sobretudo da influência, dos privilégios e do poder que perdera – desgastado pela inutilidade crônica de suas posições políticas (do passado e as atuais).

A cigarra – longe de ser uma Deusa da política, da justiça ou da música – procurava apresentar outros embalos políticos para o reino. A profissão de músico, por exemplo, estava lascada ou na era da pedra lascada, porque a cigarra não manjava de Rap e não chegava aos pés de um MC. Conhecia muitos Manos e Minas. Entretanto, trabalhava no duro mesmo; muitas vezes no chão da fábrica que a formiga gerenciava como se fosse dona (sem ser, é óbvio).

Profundamente descontente, a formiga disparava: “Abaixo o rei impostor”. No que já estava errada, porque era Rainha. Mas, tudo bem, esse erro crasso seria perdoado. E seguia:

Formiga Saúva: “Impeachment do Rei. Já!”.

E ouvia a resposta da cigarra, ainda que não entendesse o argumento que vinha dos seus sibilos:

Cigarra Twitter: “Não se pode defenestrar um rei em razão de seu governo passado; o suposto processo de cassação política tem de se basear em fatos ocorridos em 2015”.

Depois desse preâmbulo, seguiu-se um interessante colóquio, nada monótono:

Formiga Saúva: “Não me importam as delicadezas da lei”.

Cigarra Twitter: “Claro que não. Para você importa o golpe no direito e na política”.

Formiga Saúva: “Tem que ter força, até militar se for necessário”.

Cigarra Twitter: “Não podia mesmo ser diferente, com seus dentões você detona tudo, picota as pessoas que não são suas amigas”.

Formiga Saúva: “Importa-me por a casa em dia: duela a quem duela”.

Cigarra Twitter: “Sim, por em dia, bagunçando o direito e a democracia”.

Formiga Saúva: “Depois arrumamos o direito de novo”.

Cigarra Twitter: “Pois é, agora você é mágica: arruma e desarruma na hora em que bem quer”.

Formiga Saúva: “Não sou mágica, sou realista”.

Cigarra Twitter: “Se fosse realista, veria com realismo que não se desorganiza a política, o direito e a democracia ao seu bel prazer”.

Formiga Saúva: “Você fala demais, canta seus sonhos para todos os cantos. Quero ver mesmo é nas manifestações de rua, se não terei muito mais adeptos”.

Cigarra Twitter: “Coitadinha, vá sonhando, sua retórica vazia não levará nem meia dúzia”.
 

Dito e feito, a meia dúzia de formigas saúvas presente ainda tirou a roupa para protestar contra a vergonha pública que passaram.

A historinha não acabou; aliás, nunca acaba. Porque as formigas saúvas sempre pensarão em novos golpes.

No fim, ambas lembraram-se dos avisos dos antigos sábios: “Andorinha sozinha não faz verão”.