Os foliões do Rio voltam a tirar fantasias e adereços do armário para mais uma maratona de festas nas ruas da cidade. Mesmo sem o aval da prefeitura, blocos se preparam para um segundo carnaval pelas vias do Centro e Zona Portuária. A listinha de grupos que vão desfilar por aí inclui nomes novos — como o Que palhaçada é essa?, numa crítica direta à postura da prefeitura de não liberar a folia — e antigos conhecidos com novas roupagens. Uma turma de músicos que toca no Céu na Terra, por exemplo, fará um cortejo chamado Celeste. E o gigante Boi Tolo, que manteve o estandarte guardado em fevereiro, já confirmou que arrastará sua tradicional multidão no domingo. Apesar de toda movimentação — grupos de carnaval de rua no WhatsApp estão a mil —, o prefeito Eduardo Paes voltou ontem a afirmar, desta vez via Twitter, que não há blocos autorizados na cidade, acirrando ainda mais a polêmica.
Em resposta ao colunista do GLOBO Leo Aversa, que comparou o prefeito a Pôncio Pilatos – porque prometeu não reprimir a festa, ao mesmo tempo em que não a libera —, Paes escreveu: “o correto é não ter bloco! Não estão autorizados e não teremos a estrutura para a festa. A organização do carnaval de rua —, iniciada em meu 1° governo — exige meses de preparação, algo difícil na imprevisibilidade dos tempos pandêmicos”. A turma dos blocos reclama que, enquanto a prefeitura não libera o carnaval nas ruas, haverá desfiles na Sapucaí e festas privadas pela cidade. No domingo, o Boitatá, que não colocará estrutura de desfile na rua, fará um abraço simbólico na Praça Quinze, “num gesto de carinho pela cultura da cidade”.
“No momento da pandemia, a atitude da prefeitura de cancelamento do carnaval foi correta. E nós dissemos que não íamos sair. Nosso compromisso é sobretudo com a cidade e com as pessoas. Mas, nesse momento, nós vemos com tristeza o abandono do carnaval de rua. Vai ter Sapucaí, vai ter tudo, e o carnaval de rua segue proibido”, argumenta o músico e um dos fundadores do Boitatá, Kiko Horta, ressaltando que o grupo, cujo tradicional baile na Praça Quinze era feito sem recursos da prefeitura ou do patrocinador oficial do carnaval de rua, movimentava milhões na cidade: em 2020, o consumo do público no dia do evento ultrapassou R$ 4 milhões, como levantou o Observatório das Metrópoles. “Não estamos falando de botar um trio na rua sem autorização. Isso é outra coisa. Mas o Boitatá não vai botar nenhum tipo de estrutura nesse carnaval”.
Já o Boi Tolo chegou a prometer na pandemia que o próximo desfile seria o maior de todos os tempos, assim como foi o carnaval de 1919, pós-gripe espanhola. Em fevereiro, no entanto, seus integrantes ainda tinham dúvidas sobre se deveriam ou não colocar o bloco na rua, diante dos casos da Ômicron. Só que agora o cortejo sem hora para acabar e sem percurso definido é uma certeza no domingo.
“Para a gente, não faz diferença a prefeitura lavar as mãos ou não. O Boi Tolo nunca pediu autorização da prefeitura, que teve tempo para organizar a festa quando sinalizou que adiaria o Sambódromo”, diz Luis Otavio Almeida, representante do bloco. “Vamos fazer o carnaval que nós prometemos para as pessoas. O Rio está há dois anos sem festa representativa da cultura, e o momento é esse agora. Pode até não ser o maior carnaval de todos, mas será muito especial”.
Hoje, o prefeito retoma uma uma tradição que havia sido interrompida pelo antecessor, Marcelo Crivella: ele vai entregar da chave da cidade ao Rei Momo, abrindo oficialmente o carnaval. Em vídeo postado ontem, Paes anunciou que o Rio terá carnaval e destacou que a folia já foi marginalizada e já foi ameaçada: “por isso, garantir a sua realização é uma vitória não apenas de quem gosta de samba, mas de toda a sociedade. Afinal, é papel de todos nós governantes lutar pela garantia da liberdade artística e de pensamento.”
Luis Otavio, do Boi Tolo, ressalta que a proibição oficial não pode resultar em repressão: “O encontro de pessoas e a livre expressão de sua cultura feita de forma não comercial em praça pública são constitucionalmente lícitas, e qualquer repressão a elas ultrapassa o nível de contravenção. É crime”, diz, cobrando. “Que carnaval de rua vai ter, isso todo mundo sabe. O prefeito tem que olhar a cidade e agir para que ela funcione”.
Bloco para crianças
Para as crianças, haverá o Bezerro Tolinho, também no domingo. Outro que marcará presença é a Sinfônica Ambulante, cujos músicos sairão de barca de Niterói, tocando na travessia, para encontrar no Centro os foliões do Boi Tolo.
O Céu na Terra decidiu não sair. Por outro lado, na lista que circula extraoficialmente de blocos que sairão pela cidade há uma espécie de filhote, o Celeste. Na verdade, é uma formação feita por músicos que tocam no bloco de Santa Teresa.
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“O Céu na Terra não está afim de sair extraoficialmente. E a gente precisa de uma certa estrutura, relativamente grande. Não dá para sair de louco no carnaval”, explica Marcelo Cebukin, diretor musical e maestro do bloco, acrescentando. “Eu super apoio todo mundo que quer ir para a rua. No meu entendimento, a prefeitura ter que autorizar ou não é nada. A prefeitura tem mais é que reconhecer o valor cultural da festa e dar suporte. Mesmo não autorizando, a festa vai acontecer. Então, não acredito que o prefeito vai lavar as mãos completamente”.
Formado por ex-alunos da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, o bloco Dinossauros Nacionais confirmou que irá para as ruas no domingo. O grupo estará na Pedra do Sal a partir das 16h, após a apresentação dos blocos Traz a Caçamba e Piratas Ordinários. Sócio diretor do bloco, Marcos Chehab lembra que o Dinossauros respeitou as normas da prefeitura em fevereiro.
“A gente entende que carnaval é uma festa popular, livre, uma expressão de cultura que não deve ter amarras, ainda mais sabendo que os casos de morte diminuíram. Apoiamos a ciência, mas entendemos que o pior já passou”, diz Chehab.
Ele conta com a promessa do governo de que não vai coibir quem quiser fazer festa: “Ficamos bastante chateados pela prefeitura não ter disponibilizado a estrutura que a gente precisa, com relação à segurança e limpeza urbana. Mas a gente entende que é extremamente importante que não haja repressão e que seja dado um apoio da maneira que for possível”.
O Escravos da Mauá tinha até música pronta para 2022, mas decidiu não sair. Representante do bloco da Zona Portuária, Ricardo Sarmento conta que, apesar do cancelamento do desfile, será realizada uma comemoração com direito a bolo, abraço nos amigos e o samba novo. O perfil do Escravos no Instagram diz que no sábado haverá um cortejo da Cia de Mysterios, de pernaltas, do Museu do MAR até a Praça da Harmonia, seguido de encenação do espetáculo “A saga de São Jorge” e de confraternização com o bloco.
Segurança é preocupação
Há organizadores de blocos já confirmados preocupados com a violência. Além de casos de furtos e roubos, um folião foi assassinado na Rua Primeiro de Março, após participar de um bloco na Praça Quinze. A preocupação com a infraestrutura já leva alguns grupos a contratar banheiros químicos.
“É esse lavar as mãos que pode acabar tendo consequências muito graves para quem simplesmente exerce o direito de colocar o bloco na rua”, reclama o saxofonista Raphael Pavan, organizador de blocos, incluindo o Festa Privada, que sairá este ano pela segunda vez, e o inédito Que palhaçada é essa?. “O nome é uma crítica a essa ideia de achar que a prefeitura pode decidir se o povo pode ou não fazer carnaval de rua durante o próprio carnaval”.
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