Crônica imperfeita da meritocracia

Para explicar porque não existe meritocracia – salvo os (de)méritos de cada um – usarei de uma narrativa pessoal. Estou ou sou o que sou graças a muitos fatores e pessoas. Nem daria para enumerar. Porém, façamos um breve exercício comparativo/reflexivo:

– Se não tivesse sido educado indecentemente na infância – e não por culpa por dos pais, pelo contrário –, porque entrava e saia de hospitais até os 12/13 anos, com internações de até seis meses, quem seria ou onde estaria nesse momento?

– Se tivesse nascido filho de desembargador, senador, embaixador – com direito a estudar na Suíça e não em escola pública, como foi o meu caso –, teria me contentado em ser como sou?

– Se fosse educado com as portas abertas da Cornucópia (esperança financeira), seria professor de universidade pública?

– Se não fizesse as críticas que faço, se não apontasse algumas feridas para que coloquemos os dedos – assim como muitos –, não teria tido muito mais facilidades na vida?

– Se aceitasse de bom grado as canalhices da vida pública e privada, não teria espaço em mídias nacionais?

– O acesso aos meios de poder, se me rebaixasse à acomodação dos contentes com a miséria humana, não me traria “amigos” poderosos e endinheirados? E, neste caso, não poderia estar muito bem vivendo em New York ou na Europa?

Pois então, além da resposta óbvia de que seria outra pessoa e não pensaria ou agiria assim ou assado, é igualmente obviedade o fato de que a meritocracia serve apenas aos bem nascidos, educados nas belas-letras e nutridos na hora certa.

O restante, como é lógico concluir, é por conta dos méritos ou deméritos de cada um, em meio à selva do esquecimento. A meritocracia está para o leão, assim como o mérito em escapar está para a raposa – já dizia Maquiavel.

E por falar em estudar, sobretudo para os que pregam a meritocracia na testa dos outros, é urgente saber que, sem liberdade não há igualdade – entre senhores e escravos, por exemplo – e que, sem equidade, não há isonomia.

Neste caso, entre pobres e ricos, nunca caberá mérito algum, além da sobrevivência em meio à tragédia nacional. Para o caso do poder, também cabe lembrar, não existe soberano(nia) sem povo; tanto quanto a autonomia dos julgadores precisa de urgente/urgentíssima auditoria.

Se você é raposa, como também sou, cabe-nos matar um leão por dia. No sentido figurado do ditado popular, é claro. Mas, igualmente no sentido real; pois, se não for o Leão da Receita, será o leão capitalista que quer que você acredite em fantasias ou o filhote de leão que quer seu espaço, emprego, suas coisas, sua família.