O movimento era intenso nas imediações da Central do Brasil e na Zona Portuária pouco depois das 19h de segunda-feira passada. A multidão que, em passo apertado, voltava para casa, passava como se anestesiada pelo flagelo humano com o qual o carioca parece ter se acostumado nas ruas: homens e mulheres, quase sempre esquálidos, entregues à fissura do crack.
A cena de uso da droga não é mais concentrada em um único ponto, mas se dispersou pela região, num processo de espalhamento no entorno de outras comunidades onde a substância é vendida pelos traficantes, como na Mangueira; no Cajueiro, em Madureira; ou na Bandeira Dois, entre Del Castilho e Maria da Graça, na Zona Norte.
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Nesse problema multifacetado, que exige ações que vão da saúde pública à segurança, as sarjetas onde os usuários consomem a pedra continuam — e cada dia mais — à vista de todos, como constataram as equipes do GLOBO em 14 áreas da cidade na última semana. E se propagam também as consequências desse drama, com soluções ainda distantes cerca de duas décadas após a droga chegar ao Rio.
Com copinhos plásticos e isqueiros nas mãos, nas proximidades do Morro da Providência, na zona central da capital, havia usuários fumando crack em pontos como a Praça dos Estivadores, quase em frente ao Jardim Suspenso do Valongo, na boca do Túnel João Ricardo, perto da esquina com a Rua do Livramento, e próximo ao Terminal Rodoviário Américo Fontenelle. Na Mangueira, como acontece há anos, dezenas de usuários seguiam ocupando o acesso ao viaduto sobre a linha do trem na Rua Visconde de Niterói. No entanto, não se restringiam mais àquele trecho.
Grupos se drogavam ao lado do muro do metrô, perto do estádio do Maracanã, no acesso à Favela do Metrô e nas vizinhanças da Uerj. Do outro lado da linha do trem, jovens aqueciam incessantemente seus copinhos na Visconde de Niterói, próximo à estação Maracanã da SuperVia, enquanto outros consumiam o crack no terreno que serviu aos ensaios da abertura da Olimpíada do Rio, em 2016, hoje com parte dele tomado pela miséria em pequenos barracos de madeira e tecido.
Vinte e quatro horas
Já no limite entre Maria da Graça e Del Castilho, por anos usuários ocuparam uma quadra de esportes sob o Viaduto Emílio Baumgart, num acesso à Bandeira Dois. Nos últimos meses, a prefeitura do Rio os removeu do espaço, onde crianças jogavam futebol na noite da segunda-feira passada. Mas a cracolândia só se deslocou alguns passos. Ao lado da base do viaduto, transformada num vazadouro de lixo, usuários a todo momento se aproximavam de uma mulher sentada num sofá velho, se abasteciam com a droga e, segundos depois, começavam a delirar.
A metros dali, mulheres se prostituíam na esquina da Rua Genésio de Barros. Em outra rua próxima, a Luísa Valê, as calçadas estavam ocupadas por barracos que, antes, ficavam na quadra de esportes, numa extensão da cracolândia que tem acuado moradores.
“A rua está cheia de placas de venda dos imóveis, que são oferecidos muito abaixo do preço de mercado. Mas os interessados, quando chegam aqui, desistem de fazer negócio. Os assaltos a pedestres têm crescido. E, onde moro, além de grades, investimos em mais cinco câmeras, além de termos reforçado a iluminação por causa da insegurança. Não basta o poder público desocupar a área, porque eles voltam no dia seguinte”, diz uma moradora da Luísa Valê, que preferiu não se identificar.
De dia, à noite, a qualquer hora, o fluxo do crack também não para no entorno das comunidades do Complexo da Maré. Empurrados à situação de rua, na Avenida Brasil, na altura do Parque União, alguns sobrevivem em camas e barracos sobre as pedras pontiagudas instaladas nos canteiros da via expressa, como uma arquitetura hostil justamente para afastá-los dali. Outros ocupam a pista do BRT próximo à Estação Maré.
Já no acesso à Rua Teixeira Ribeiro, uma das principais do complexo, também às margens da Brasil, usuários não se incomodavam, na segunda-feira à noite, com a passagem de uma viatura da PM, com os fuzis apontados para fora das janelas. Enquanto que, na quinta-feira, por volta das 16h45, em pleno canteiro de obras do BRT Transbrasil, outro grupo colocava fogo em fios de cobre, cujo furto causa transtornos até para a circulação das linhas de trem.
A cem metros da patrulha
Na Zona Sul, a presença da polícia tampouco intimida usuários nas imediações do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. No fim da noite de segunda-feira, uma viatura permanecia baseada na esquina da Rua Sá Ferreira com a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Em frente aos prédios da Sá Ferreira, um casal fumava crack andando pela calçada. Na Nossa Senhora de Copacabana, a menos de cem metros da patrulha, um homem fazia o mesmo, sentado na porta de uma loja fechada.
“É uma cena cotidiana. Passam turistas, camelôs vendem frutas, gente sobe e desce do morro e usuários de crack se drogam para quem quiser ver, principalmente à noite e de madrugada”, afirma um morador da Sá Ferreira.
No Jacarezinho, nem a implantação do programa Cidade Integrada, do governo do Rio, em fevereiro deste ano, inibiu a continuidade do tráfico do crack. Os usuários se aglomeram em pontos próximos à Avenida Dom Hélder Câmara, onde uma imagem na última terça-feira esquadrinhava o quão cruel pode ser a dependência da pedra: sentada numa cama improvisada na calçada, com um copo plástico para fumar o crack na mão, uma mulher tinha o rosto, as pernas e os braços magros, mas um barrigão de grávida, com o olhar que se mantinha o tempo todo perdido.