Já alertamos, em outras oportunidades “comemorativas” à data de 20 de novembro, que sempre nos causa estranheza, apesar de reconhecer a sua importância, ter um dia dedicado à consciência negra.
Não que os negros não necessitem dessa consciência, por mais paradoxal que isso possa parecer. Quem leu Fanon sabe muito bem o que estamos a dizer: “o negro escravo de sua inferioridade, o branco escravo de sua superioridade, ambos se comportam em função de uma linha mestra neurótica.” Contudo, acreditamos, sinceramente, que a consciência que mais requer consciência, com perdão pelo solecismo, nessa questão toda, é a branca.
Em nosso texto intitulado “Há consciência branca” , esclarecemos bem essa necessidade e, vejam que lá estávamos tratando, nada mais nada menos, sobre uma abordagem equivocada do magistral Ruben Alves.
Os “deslizes” são muitos e até soam com naturalidade. Todos devem se lembrar de que o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso , ao fazer um “elogio” ao então e ainda seu colega de Corte, Ministro Joaquim Barbosa, disse ser ele “um negro de primeira linha”. Se essas duas personagens de inquestionáveis relevâncias no cenário nacional e internacional cometeram essas infelicidades, imaginem num quadro de ignorância e maldade a que, nós negros, não estamos sujeitos.
O ódio que recai sobre os negros é perpetrado em todos os níveis da sociedade e não escolhe sua vítima, se pobre, poderosa ou rica. No futebol, ambiente em que vivemos por mais de oito anos , era de se esperar, pelo menos, uma trégua, mas, igualmente, o clima nos é muito hostil. Acusam-nos de fazer macaquices e de sermos encardidos.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. trad. Sebastião Nascimento com colaboração de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu editora, 2020. p. 74.
PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Há consciência branca? Jornal do Brasil. Publicado em 08/12/2010. Acesso em 18 de novembro de 2024. https://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2010/12/08/ha-consciencia-branca.html
O fato ocorreu na cerimônia de aposição do retrato do Ministro Joaquim Barbosa na galeria de ex-presidentes da Corte. Acesso em 18 de novembro de 2024. https://oglobo.globo.com/politica/barroso-chama-joaquim-barbosa-de-negro-de-primeira-linha-em-discurso-21449394. Fomos jogador profissional de futebol e vivemos dessa “magia” nos idos de 1980 até 1988.
Aliás, adjetivos para nos identificar não faltam. O próprio dicionário da língua portuguesa é riquíssimo nesse quesito ao grafar que a palavra negro tem vários significados e, ao consultar “o pai dos inteligentes”, temos: NEGRO. De cor preta; diz-se dessa cor; preto: terno de cor negra; diz-se de indivíduo de etnia, ou raça negra; sujo, encardido, preto: A criança está com as mãos negras; as nuvens negras anunciavam tempestade; muito triste; lúgubre: “pensar [Casimiro de Abreu] que sua morte poderia ocorrer em Lisboa …. o fazia mergulhar na mais negra infelicidade.” (Carlos Drummond de Andrade, Confissões de Minas, p. 28); melancólico, funesto, lutuoso: Negro destino o esperava. Maldito, sinistro: Em negra hora chegou ali aquele bandido. Perverso, nefando: O negro crime abalou a cidade. S. m.: Indivíduo de etnia, ou de raça negra. Escravo. Tratamento familiar, carinhoso, e algumas vezes algo irônico, equivalente a ‘meu bem’, ‘meu amigo’; meu nego, meu bichinho: — Que é que há, meu negro?; Calma, meu negro, isto não vai assim, não! Trabalhar como um negro. Trabalhar muito [sem grifo no original]. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed., rev. e aument., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. pp. 1187). Para Caldas Aulete. NEGRO: adj; escuro; sombrio; denegrido; requeimado do tempo, do sol; lutuoso; fúnebre; tenebroso; caliginoso; que causa sombra; que traz escuridão; tempestuoso; tétrico; horrível; infausto; que anuncia infortúnios; ameaçador; medonho; adverso; inimigo; funesto; maldito; condenado; pervertido; execrável; horrendo; pavoroso; odioso; nefando; desprezível. S.m. homem de raça negra, preto, escravo .
Como bem asseverou o Ministro Barroso, em seu pedido de desculpa, o racismo tem de ser enfrentado, mesmo o “que se esconde no nosso inconsciente” . Daí a importância da consciência branca.
Sobre essa questão, ver o que escrevemos nos textos intitulados PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. “Vida de nego é difícil”, Marília/SP, v. 21.610. 2004; PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. ‘Vida de nego é difícil’: com consciência ou não, Marília/SP, 2009; PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. ‘Vida de nego é difícil’ até nos EUA!, Marília/SP, 2008. PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Precisamos falar sobre Brasil. Site Universidade de Brasília, 2020.
Acesso em 18 de novembro de 2024.
https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/barroso-pede-desculpas-por-chamar-joaquim-barbosa-de-negro-de-primeira-linha-0cidc9gef9iqp2nxhv5pvraqb/
acessado em 18 de novembro de 2024. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/11/18/alunos-de-direito-puc-acusados-de-racismo-deixam-escritorios-famosos-em-sp.htm
Mas, o racismo, infelizmente, na sua maioria, tem consciência! Acontece em todos os cenários de (não)convivência da sociedade, até e contraditoriamente, no meio jurídico . Mesmo no esporte, local cuja inclusão deveria ser a regra.
Aliás, somos acusados de fazer firulas, gingas etc., entretanto se esquecem de que desenvolvemos essa habilidade porque, no princípio, quando os brancos trouxeram o futebol para o país da bola, para conseguir o quórum para as partidas, os negros eram “convidados” a jogar, mas com uma condição expressa: não tocar, não relar nos brancos, sob pena de severa punição e até prisão. Como alternativa, eles usavam da ginga para, literalmente, driblar os adversários brancos.
Os episódios são muitos. Quem nunca ouviu falar da expressão “time de pó de arroz”? Jogador de um time carioca, Fluminense, cobriu o rosto com o tal pó de arroz para esconder a cor da sua pele. O suor o traiu e logo o seu “defeito de cor” veio à tona.
No futebol brasileiro, até pouco tempo, havia uma máxima: goleiro negro não vinga! Isso, em razão do efeito maracanazo, copa do mundo de 1950 perdida pelo Brasil para a seleção uruguaia no Maracanã. O principal acusado pelo fracasso da seleção foi o goleiro negro Manoel Barbosa. A torcida o elegeu, para sempre, como o único responsável pela derrota brasileira. Sua carreira teve ali, naquele episódio, o fim.
Essa situação chegou ao ponto de o goleiro Barbosa ser proibido de visitar a delegação brasileira na véspera da decisão da Copa do Mundo de 1994 sob o pretexto de que ele traria “mau agouro” à nossa seleção. Triste e isolado, morreu pobre e gritou: “No Brasil, a pena máxima é de 30 anos. Eu paguei a vida inteira por causa de uma derrota.”
Recentemente, mais uma vez, Vinícius Júnior, atleta brasileiro e jogador do Real Madri da Espanha sentiu, na pele, o defeito da sua cor. Seu “erro”? Apontar o racismo europeu. Na fatídica votação do ganhador da bola de ouro pesou, novamente, contra “nós” o nosso defeito de cor.
Claro que desculpas são suscitadas e justificativas procuram dar cores diferentes à questão. E é exatamente isso que mais nos toca e dói. O tal “princípio da ausência, no qual algo que existe é tornado ausente, é uma das bases fundamentais do racismo.” Você, Vinicius, incomodou os brancos europeus e eles vão isolá-lo pela sua “ousadia”, “insolência” de não se curvar à vontade deles, ao poder da branquitude.
Disponível em: https://brasil.elpais.com/esportes/2020-07-16/condenados-pelo-maracanazo-absolvidos-pela historia.html#:~:text=%E2%80%9CNo%20Brasil%2C%20a%20pena%20m%C3%A1xima,h%C3%A1%2070% 20anos%2C%20no%20Maracan%C3%A3. Acesso em: 13/08/2024. Esses dados foram retirados de uma pesquisa de monografia – TCC – final de curso sob nossa orientação. O belo trabalho do discente pesquisador merece ser lido e refletido. MOREIRA LIMA, João Pedro. A responsabilidade dos clubes de futebol sobre as atitudes racistas de suas torcidas no Brasil: de Aranha a Vinícius jr. Monografia de graduação defendida perante Banca examinadora na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília no ano de 2024, a ser publicada na Biblioteca Digital de Monografias da UnB.
FANON, Frantz. Op. Cit. citado no prefácio de Grada Kilomba. p. 12.
Parabéns pela sua resistência e persistência! Está na sua rede social estampado: “Eu farei 10x se for preciso. Eles não estão preparados.” Mas, ao contrário do que você pensa, com escusas pela intromissão, eles sabem exatamente o que estão fazendo, então, estão, sim, preparados.
Assim como gritava Clarice Lispector, “Porque há o direito ao grito, então eu grito”: Você está só! Ou melhor, nós negros estamos sós.
Referências bibliográficas
- ALVES, Rubem. “Crioulinha”. São Paulo, terça-feira, 16 de novembro de 2010. FOLHA DE S. PAULO – COTIDIANO. Acesso em: 18 nov. 2024.
- FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. trad. Sebastião Nascimento com colaboração de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu editora, 2020.
- GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. São Paulo: Record, 2006.
- PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Há consciência branca? Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2010/12/08/ha-consciencia-branca/. Acesso em: 18 de nov. 2024.
- PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Vida de nego é difícil, Marília/SP, v. 21.610, 2004.
- PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. ‘Vida de nego é difícil’: com consciência ou não, Marília/SP, 2009.
- PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. ‘Vida de nego é difícil’ até nos EUA! Marília/SP, 2008.
- PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Precisamos falar sobre Brasil, site Universidade de Brasília, 2020.
- PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Prazer: eu sou o vigésimo! Ribeirão Preto/SP, 2018.