A ideia de que nossos tempos são de uma modernidade líquida é pós-moderna, sem entender, no entanto, porque “tudo que é sólido desmancha no ar”. Assim, seria preferível pensarmos na Modernidade Tardia, tendo-se a catedral catalã da Sagrada Família como referência; pois, além de que “todo sagrado será profanado”, esta obra interminável nos incomoda com um passado sem fim.

Na Modernidade Tardia se recorta a perspectiva de que o passado revive em nós e, por vezes, muitas vezes, assombra-nos. Na modernidade Tardia, o passado não apenas direciona (se é possível pensar no devir que apontamos para o “hoje”) como, sobretudo, limita.

E este é o caso de pensarmos a presença do Estado de Exceção como sombra do absolutismo ou, antes disso, como rebotalho mal-disfarçado do instituto golpista que teve emprego certeiro com o general romano Caio Júlio Cesar – e, por isso, resultando no apelido de cesarismo.

Se bem que, neste caso, o uso da exceção era direto, uma ação clara e objetiva do poder absoluto e não se interpunha como mentira pública em nome da democracia; o oposto do que acostumamos a ver, exatamente, na modernidade. O que daria a pensar que se impõe como farsa, e ainda que bem planejada e executada com sucesso nos dias atuais.

Porém, em tempos de fascismo líquido (pegajoso, esponjoso, doentio), sente-se a força do autismo social. Sem dúvida, a regularização cultural do fascismo nosso de cada dia provoca ira coletiva e autismo social: o medo está atrás de cada porta, na virada de esquina, no olhar furioso que você não sabe o porquê.

Neste sentido, o autismo social não equivale à simples fuga da realidade, não é um tormento psicológico (ou não só). Antes disso – ou, além disso – é a mais plena expulsão da Ágora, resultante do mais completo estranhamento do Político, e mutilação da condição humana (seguindo-se o ensinamento da Filosofia Política da Grécia clássica de Aristóteles).

Daí vivenciarmos e até aprovarmos a agorafobia, repartindo um tremendo medo generalizado e que provém da insegurança e das represálias sociais: o que você curte no FB é monitorado por “amigos” e inimigos (e empresas de marketing).

Na Modernidade Tardia, portanto, podemos dizer que há um cerne e um epifenômeno: a aparência. O cerne da mundalidade está no controle hegemônico do capital financeiro e no uso renitente de formas-Estado de Exceção (aprisionando-se o Político longe do espaço público e a serviço dos grupos de poder igualmente hegemônicos).

O epifenômeno dessa condição existencial é, exatamente, o que se pode denominar de autismo social: insegurança x mecanismos controlativos. Parece lógico, natural, ético, que a vida privada e pública sejam devassadas a cada instante e que o Político seja expulso da vida comum do homem médio.

Nesse amplo miolo ocupado pela exceção, naturalizando o autismo social, o direito parece suportar bem a deslegitimação da condição humana. Os direitos fundamentais são cozidos na banheira da mesmice e da falta de conteúdo analítico do realismo político.

Sem que o Político faça parte da condição humana, pra que exercitar a isonomia, a isegoria, a autonomia? Afinal, a sociedade do controle (sob os moldes fascistas e de exceção) não tem na liberdade um fundamento da socialização humana.

Talvez, para diferenciarmos, pudéssemos dizer que há autômatos, aqueles que nem se deram conta da manipulação orquestrada de sua vida: o senso comum. E, em complemento, há os autistas sociais, seres políticos que sofrem desesperadamente da despolitização, com sua saída forçada da arena política. Seres políticos e politizados que sofreram da colonização provocada pela asfixia das relações humanas não-ojetivadas, quer dizer, as que não são dominadas pelo dinheiro e pela mercadoria.

A ética presente nessas condições humanas objetivadas e controladas, sobretudo pela exceção invisível e sorrateira, como é próprio do fascismo, é a pior possível. Mas, torna-se quase natural, com tanta pressão e bombardeio diário indicando o caminho de “mão única”: o ser pensante de modo crítico sofre Bullying. 

Todavia, não é somente uma questão de mesmice, de pasmaceira consumista (é claro que há imbecilização), pois, ainda mais grave, é a expulsão/exclusão do Político da alça de mira das preocupações cotidianas. Também não se confunde com a crítica partidária, contra a corrupção, por exemplo.

O autismo social refere-se à falta de subsídios, de insumos propriamente políticos (para além do partidarismo) para se entender, analisar a condução da coisa pública. Não se pensa, sequer, que a vida pública está bem além dos partidos de ocasião.

No fundo, não se sabe mais o que é política – e por mais que tenha sido ínfimo o conhecimento acerca das forças políticas em jogo, no passado, ainda havia espaço público. De um modo ou de outro se aprendia como “fazer política” – se não na teoria e na análise aprofundada, ao menos na prática se apreendia um certo “o que fazer”.

A questão maior, por fim, e que se encobre na hegemonia atual do sistema produtivo, é como desnaturalizar a ética da exceção e como trazer de volta o Político para dentro da condição humana.

Saber, conhecer este caminho de liberdade sem dúvida resolveria o problema da robotização política (senso comum, despolitização) e do autismo social. Não resolveria as contradições do capitalismo excludente do século XXI, mas traria a chance de pensarmos alternativas não-fascistas para os males gerados pelo Político aprisionado pelo capital, especialmente em sua face excludente da consciência e da prática política dos rebelados de outrora e dos quais somos herdeiros.