A casa do pica-pau, é claro, estava cheia de buracos.

O cara de pau, por sua vez, também esburacou a sua. Mas, como todo bom cara de pau, dizia que só o outro era desordeiro.

O pica-pau, então, para deixar claras as coisas, resolveu ventilar um pouco mais a residência do cara de pau. E tascou-lhe novos furos.

Possesso, o cara de pau procurou a justiça. Nem se importou com os danos, queria logo de cara o despejo do pica-pau.

O juiz, meio abobado, perguntou-lhe: “Como vou despejar o pica-pau da casa dele? Não posso, porque não há crime dessa natureza”.

Porém, o cara de pau não se importava com a legalidade ou não de seu pedido, queria mesmo era despachar o pica-pau para bem longe.

O juiz ainda lhe advertiu que, se insistisse, estaria cometendo outro crime: “O Sr. Cara de pau comete o crime de ‘instigação ao crime”.

O cara de pau não entendeu nada. Apenas continuava com sua ladainha.

Dessa vez o juiz foi mais intuitivo, menos jurídico: “Se expulsar o pica-pau, como pássaro ele voará de volta, inclusive para fazer uma casa dentro da sua”.

Aí o cara de pau surtou de vez: “Como assim? Nada disso, o senhor juiz deve expulsar ele do Reino da Natureza”.

O juiz, sem saber se ria ou chorava, decretou uma hora de silêncio como pena ao cara de pau.

Em desespero, o cara de pau explodiu: “O pica-pau comete o crime e eu é que sou punido? É injustiça pura”.

Sem advogado, porque se julgava macho demais, o cara de pau estava todo enrolado perante o juiz. Na correta avaliação do magistrado, cara de pau queria usar o “direito contra o direito”.

Pensava o juiz com seus botões, mas não falava: “muito pior do que o crime é a desinteligência contra o estado natural do direito”.

Então, procurando ser mais sereno, o juiz falou: “O Sr. Pica-pau cometeu crime sim. Será punido com o dever de indenização. Todavia, o Sr. Cara de pau comete crime mais grave ao querer o desterro ou, pior, o extermínio da espécie pica-pau”.

E foi assim que o juiz já seguiu direto para a sentença final: “O Sr. Pica-pau será investigado e punido em todos os seus atos maléficos e perversos; cabendo-lhe a pena de ter o bico fechado. O Sr. Cara de pau, por afrontar o equilíbrio do Reino da Natureza, ao propor a extradição da espécie pica-pau – enterrando o pluralismo ambiental e a diversidade política –, ficará proibido de passar óleo de peroba na cara”.

O Reino da Natureza, acredite se quiser, continuou a ser o mesmo de antes. Porque, como bem sabia o juiz, o problema não seria solucionado com a aplicação dessas penas. Também sabia o juiz que mudando as leis nada se construiria de saudável no Reino da Natureza, porque ambos, pica-pau e cara de pau, procurariam novas brechas e buracos na lei.

O juiz, no entanto, tinha duas certezas: passar por cima do direito faria o Reino da Natureza ser pior do que já era; a maneira de ser dos dois precisava de um choque de cultura. Um choque de altíssima voltagem.