Museu Oscar Niemeyer
Museu Oscar Niemeyer

Em ampla e agradável sala o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, recebe até outubro a exposição de fotografias A União Soviética através da câmera. São trabalhos de seis fotógrafos que registraram momentos da história da União Soviética, desde 1956 até 1991, quando aquele imenso país se desfez politicamente e, em algumas de suas antigas regiões, violentamente. Não são fotos de exaltação ao extinto regime e de seus dirigentes supremos. Tão pouco são denúncias de terror político e os “horrores do comunismo” ou dos equívocos do “socialismo real”. São registros dotados de original e surpreendente espírito contestatório.

As fotografias trafegam por narrativas críticas sagazes e questionadoras. Certamente por essa mesma razão seus autores foram censurados e vigiados no mesmo período, provocando, na atitude das autoridades governamentais, a reação e o comportamento temíveis e dos quais estas pretendiam esquivar-se e ocultar. A façanha já valeria por si.

A exposição oferece uma crônica da vida cotidiana e das pessoas comuns – trabalhadores, idosos, crianças, famílias, mulheres e homens – em momentos de descontração, lazer, no enfrentamento das agruras do dia a dia. A sensibilidade poética não se desliga da perspectiva crítica. Esta vai além, distante da histeria anticomunista que assolou o mundo ocidental e que teima em reacender no imaginário dos brasileiros que ostentam panelas-gourmet recém adquiridas em liquidações das lojas de Miami.   

 

Prelúdio ético e estético

A beleza e a dura realidade da vida retratadas na exposição transcendem o triunfalismo ou a negação de valores ideológicos do modelo soviético. Vão ao âmago destes, confrontando-os com os rostos, corpos, mãos e olhares das pessoas. Uma espécie de prenúncio ético e estético do conhecido e admirado Sebastião Salgado.

Os visitantes encontram em quase duas centenas de fotografias a angústia humana, resignada e sem esperanças, diante das cegas conquistas da tecnologia, das realizações, símbolos e ideais do progresso econômico. A gritante semelhança na expressão facial de duas crianças, uma cega e outra não, dão a medida da generalização do comportamento e dos sentimentos sociais no mundo soviético entre o fim da era de Stálin (1953-1956) e a derrocada da Perestroika de Mikhail Gorbatchev (1989-1991).

Estas imagens do passado surgem, aos olhos do século XXI, como prognósticos e alertas ao entusiasmo ingênuo contido na veneração à eficácia do mercado, da gestão eficiente, da produtividade, entre outras palavras-mágicas do discurso neoliberal que assola o globo, hoje, de norte a sul, no ocidente e no oriente. E encontra adeptos e entusiastas no Brasil que resiste às mudanças sociais distribuidoras de renda e de poder.

O pensamento único centrado na técnica, na ciência, na empresa e no poder militar que confere sentido à vida social e econômica gera, no passado e no presente, lá e cá, corrupção, opressão, pobreza e desumanização nas relações interpessoais e sociais no cotidiano. A desestruturação econômica e política no Oriente Médio e na Grécia são exemplos gritantes nos últimos anos.

 

História da tecnocracia

A multiplicidade de reflexões, significados e interrogações que a exposição A União Soviética através da câmera contém podem ser explorados, estudados e descobertos em sucessivas e atentas visitas. Para além do momento da história em que aquele país era um enigma e uma miragem aos olhos do Ocidente e sob as lentes da Guerra Fria, a União Soviética que se revela é um país de pobreza material na vida diária e de riqueza técnica e construtiva nas edificações, máquinas e veículos na corrida espacial.

A aparente homogeneidade social e cultural determinada pela escassez de bens de consumo, visível na década de 1950, vai cedendo terreno às brutais e contrastantes diferenças econômicas e entre as gerações nos anos oitenta. A história do século XX torna-se mais igual. As dicotomias políticas que cindiram corações e mentes na polaridade ideológica reagrupam-se na história da tecnocracia, fenômeno social disseminado e consagrado no início deste século. Nos próximos anos talvez desponte um novo campo de investigação histórica e nas demais ciências humanas.

Este mundo tenebroso e aterrorizante não pertence ao passado remoto e a espaço longínquo. É nele que vivemos todos, aqui e agora. E neste mesmo vértice despontam a força e a atualidade, a sensibilidade crítica e a perspicácia de futuro antevistos pela câmera dos fotógrafos convocados pela exposição.