Porque ser contra vender o DAEM

A privatização definitiva ou temporária – sob o nome de concessão ou terceirização – é uma medida dos fracos, porque é o caminho mais fácil, ou dos espertos, porque sempre pode haver algum dividendo. A alternativa republicana, difícil e longa, é moralizar o serviço público, investir em condições de trabalho, remuneração adequada, treinamento e qualificação constante, e na equiparação técnica e tecnológica dos setores envolvidos. Por isso somos contra qualquer investida contra o DAEM de Marília. Não coloquemos a alma pública à venda, para saciar o capital.

A terceirização destrói exatamente a confiabilidade construída em torno dos sistemas peritos, dissolvendo-se a previsibilidade, a plausibilidade, a continuidade segura dos serviços públicos essenciais prestados. Já vimos isto com a plataforma marítima da Petrobrás, a P-36, em 2001, ao custo de onze vidas e centenas de milhões de dólares de prejuízo para o povo brasileiro. Afundou porque o serviço essencial prestado não era de qualidade, isto é, fora terceirizado, agilizado a toque de caixa na formação de profissionais de segurança que demanda anos de treinamento e de prática.

Um “Homem de bem”, como se dizia antigamente, era sobretudo honesto na gestão/condução dos negócios públicos. Sendo honesto, como governante, não apenas dava o exemplo a ser seguido como imponha um sentido obrigatório para todos. Punindo-se, portanto, o mal-feito de quem não se ajustasse à coisa pública. Graciliano Ramos relatou em prosa literária sua prestação de contas públicas.

Em Graciliano, está em foco o atraso político (coronelismo) e a desigualdade social: miséria do povo (Relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios. São Paulo : Record, 2006). Sua análise se iniciou muito cedo, desde que fora prefeito de Palmeira dos Índios e enviara relatórios de sua administração ao Governo do Estado. É um verdadeiro raio x sucinto, direto: “Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam” (p. 24).

O humor sempre estivera presente: “No cemitério enterrei 189$000 — pagamento ao coveiro e conservação” (p. 27). É curioso notar que investira mais em música do que na polícia, coisa de gente de coração bom. Enfrentou uma mini Revolta da Vacina, quando obrigou a limpeza pública e o recolhimento dos bichos: “Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no ciclo preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças” (p. 30).

Sempre se colocara contra o nepotismo e a corrupção: “Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados” (p. 34-35).

Sem dúvida é um retrato do atraso que aguardava a modernidade, como na queixa de que não encontrou nada parecido com o Estado de Direito: “Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite. Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem” (p. 36). Também percebia que o povo não admira o princípio da probidade administrativa: “…há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal…” (p. 37).

A educação, quiçá como a de hoje, era uma lástima: “As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância […] Não creio que os alunos aprendam grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros” (p. 50-51). Com a educação recebida o povo correspondia com a cultura da mediocridade: “E o palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do sertão. Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada” (p. 55).

Mas, é certo que mais alguém nesse país imenso deveria ter sua sina de honestidade, mesmo que pagando um preço alto: “Esforcei-me por não cometer injustiças […] Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me” (p. 57). Os dois relatórios foram produzidos entrando nos anos 30, quando, por fim, Graciliano Ramos renunciou ao cargo de prefeito. Há muitos que deveriam o mestre: renunciando.

Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos

Marcos Del Roio
Professor Titular de Ciências Políticas da UNESP/Marília