No Brasil, temos duas castas sociais: Povo e povo.

O Povo é sujeito de direitos e o povo é sujeito ao direito.

O Povo, assim maiúsculo, refere-se aos que são abrigados pelo Estado de Direito (na verdade, só existe para esses), não tem problemas materiais e nem faltam amigos nos grupos de poder. Já o povo, apequenado no minúsculo, é aquele que troca o sal do suor do rosto pelo salário.

O Povo vive de rendas ou lucros (se bem que, a renda é uma forma de lucro), enquanto o povo vive de ordenados. Muitas vezes esses ordenados ou salários são parcelados ou, quando não, sofrem rebaixamento (em acordo sindical) para evitar demissões em massa.

O Povo tem hospitais equipados e equiparados aos melhores do mundo. O povo rasteja e implora para não morrer em longas filas de espera, ora porque acabou o medicamento, ora porque os médicos residentes e plantonistas estão em greve.

O Povo é capaz de enviar os filhos para estudar no Velho Continente, na busca da soberba herdada (e perdida) da cultura Coimbrã. O povo não tem merenda na escola pública.

O Povo compra votos para seus representantes, o povo vende a consciência em troca de um par de dentaduras. O Povo sonega impostos, o povo “rouba”. O Povo, contando-se a exceção praticada em lava-jatos da moralidade pública, é conduzido para depor; o povo é algemado para lamber a carceragem. A Lava Jato de verdade serve só ao Povo.

O Povo é amigo de Deus e, em sua homenagem, prestou-lhe um juramento vitalício em 1964; sempre fiel à Marcha da Família com Deus e pela propriedade. O povo é aquele que doa 10% de cada centavo que ganha para igrejas em busca de salvação.

O Povo não paga mais pedágio (a não ser o da corrupção sistemática), porque só anda de jato; mas, o povo tem de morrer com o dízimo que dizima sua vontade verdadeira e os parcos recursos.

O Povo já foi embalado em prosa e verso; o povo sofre do mal da ironia. Aliás, existe até uma ironia dos pobres. Quando se vê um remediado (no fundo, um falso remédio do capital, um placebo pra dizer que as classes sociais são móveis), logo se diz: “mas, você é rico”. O Povo consome (e como); o povo come – quando dá. O Povo faz política; o povo sofre da política.

O Povo faz panelaço (alegando que evasão de divisas não é crime); o povo tem de lavar essas suas panelas todos os dias. O Povo reina; o povo não sabe conjugar esse verbo. O Povo se formou com o desencantamento do mundo, com o fim das ilusões e com o advento da razão que opera no mercado e no Estado. O povo é desencantado com a vida.

O Povo contrata políticos profissionais para fazer o serviço sujo; o povo, porém, luta para se profissionalizar em cursos meia-boca. O Povo faz patrimônio com dinheiro público e o povo paga esse patrimônio com o FIES.

O Povo fabrica uma “massa crítica” de notáveis intelectualoides, enquanto o povo é massa de manobra. Nessa linha, se o Povo tapa o sol com a peneira, o povo reparte a crença ideológica de que “o sol nasceu para todos”.

O Povo é hegemônico, impõe sua vontade na política, na cultura, na economia, e com facilidade, porque o povo é confuso e reproduz o elitismo. Mas, que isto não sirva de desculpas, porque Povo e povo são malandros e cheios de iniciativa para dar um “jeitinho na formalidade”. O que ainda revela que temos vários “brasis” e povos – ou “semi-povos”.

Outra característica, ou ironia social, está no fato de que o povo originário (indígena) tende a ser mais “civilizado”, apesar de ser considerado atrasado. Tem uma relação fantástica com a natureza e sabe muito bem o que é sustentabilidade.

Nosso maior dom está na alegria, na música, na arte popular do folclore; o povo alegre (africano) é dançante, vital e trabalhador. E por isso o Brasil ainda é um país.

Por isso e por outras, o Povo é sujeito de direitos e o povo é sujeito ao direito. Você está em qual dessas duas castas?

Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
Inaê Level
Professora de Sociologia da Rede Pública de Ensino