Ser professor em tempos de miséria humana

Iniciei minha vida profissional na educação básica, ainda estudante de graduação, em meados da década de 1980. Na cidade de São Paulo tornara-se folclórica a reveladora conduta de um endinheirado dono de escola na zona norte que, em voz alta, anunciava na sala dos professores, no intervalo das aulas, a ausência ou não de esperados reajustes salariais. E arrematava com um juízo final: “quem não estiver satisfeito pode ir embora. Professor está cheio por aí, a gente chuta uma lata de lixo na rodoviária, cai um monte”.

Este tipo de tratamento e de desprestígio social e profissional programado sempre fez parte do procedimento de administradores públicos e privados e de seu subordinados imediatos. Trata-se do esforço de reprodução e de perpetuação da frágil e instável imagem e posição de dominação social e política. A herança da mentalidade e do comportamento escravista. Senhores de escravos e de muitas riquezas sempre se sentiram vítimas daqueles que eram tratados por eles como seus algozes em potencial.

Paulo Freire lembrava que o indivíduo não educado, ainda que oprimido, tende a reproduzir as práticas sociais e culturais dos seus opressores. Isto sempre foi percebido na vida cotidiana de professoras e professores, também na escola e na universidade pública. Agressores posarem de vítimas não é mera recriação do bolsonarismo social, mas o restolho do escravismo, ainda entranhado em corações e mentes de inúmeras pessoas.

Afortunadamente, fui educado na cultura laica. Um valor sempre estimado na família, desde 1927, quando o avô alfaiate se tornou militante e dirigente de entidade associativa vinculada ao Bloco Operário e Camponês, no interior de São Paulo. A educação laica proporciona ao indivíduo tal autonomia e segurança intelectual que ele passa a sofrer a oposição e a hostilidade explícita dos patronos de teorias, práticas e crenças pouco ou não laicizadas. A força social e o mérito da educação laica, de natureza liberal, na origem, reside no fato de que o indivíduo não é ensinado e disciplinado para temer e para servir a autoridades fundadas em postos burocráticos e institucionais e de poder econômico, político e ideológico.

Em meu conhecimento pessoal, a rebelião intelectual, cultural e política de integrantes da família sempre custou a alguns deles a experiência dos xingamentos e da delação, da prisão temporária e prolongada, da vigilância e do assédio, dos depoimentos e da tortura física e psicológica em salas de delegacias. Humilhados e ofendidos, desde a década de 1930, conheciam e sabiam da truculência e da verborragia empregada na intimidação pela injúria e o moralismo hipócrita e subserviente, disparadas por policiais, delegados e medíocres burocratas de plantão. Os tais miseráveis, do escritor Victor Hugo.

Estes últimos sempre fizeram de suas obscuras gavetas, normas impressas, ofícios em papel timbrado, carimbos e assinaturas, instrumentos de assédio, ameaça, chantagem, extorsão, violência verbal e simbólica. Ostensivamente bajuladores de autoridades instaladas, exibiam-se sufocados em toscos paletós de ocasião e de gosto duvidoso. Invariavelmente, desatavam um tímido sorriso no alfaiate que, atônito, presenciava o desalinho ético e estético com que aqueles indivíduos exalavam suas pretensões de distinção profissional e de prestígio social ante “elementos” reunidos compulsoriamente.

Em 2027 nossa família celebrará o centenário da opção pela cultura laica entre nós. Eleição fascinante e libertadora. Ela nos possibilita encarar atitudes e palavras do bolsonarismo em sua real dimensão de desorientação e de ressentimento social, de vazio significado cultural, diante da singular experiência humana de ser professor e brasileiro no século XXI.