A varíola era uma doença terrível.
“Seu corpo iria doer, você teria febre alta, dor de garganta, dor de cabeça e dificuldade para respirar”, diz o epidemiologista René Najera, editor do site História da Vacina.
Mas isso não era o pior.
“Além disso, você teria uma erupção cutânea horrível e desfigurante em todo o corpo – pústulas cheias de pus no couro cabeludo, nos pés, na garganta e até nos pulmões – e, ao longo de alguns dias, elas secariam e começariam a cair.”
Com o avanço do comércio global e a expansão dos impérios, a varíola devastou comunidades ao redor do mundo. Cerca de um terço dos adultos infectados com varíola morreriam, e 8 em cada 10 crianças. Estimativas apontam que no início do século 18 a doença matou só na Europa quase 400 mil pessoas todos os anos.
Os portos eram particularmente vulneráveis. Um surto de varíola em 1721 na cidade americana de Boston matou 8% da população.
Mesmo se você não morresse, a doença tinha efeitos de longo prazo em alguns sobreviventes, como cegueira e diversas cicatrizes.
“Quando as crostas caíam, elas deixavam você com marcas e desfigurado, e algumas pessoas cometeram suicídio em vez de viver com as cicatrizes”, diz Najera.
Tratamentos iam dos inúteis aos bizarros (e também inúteis). Eles incluíam colocar pacientes em quartos quentes ou em quartos frios, evitar comer melões, envolver doentes em panos vermelhos e até 12 garrafas de cerveja a cada 24 horas, segundo um médico do século 17. A intoxicação pelo álcool deve, pelo menos, ter aplacado a dor.
Havia, no entanto, uma cura genuína. Conhecida como inoculação, ou variolação, ela envolvia pegar o pus de alguém afetado pela varíola e aplicar na pele de uma pessoa saudável. Outra técnica passava por injetar pó das crostas pelo nariz.
Inicialmente praticada na Ásia e na África antes de ser levada à Europa no século 18, e à América do Norte por um homem escravizado chamado Onesimus, a inoculação frequentemente resultava em casos brandos da doença. Mas nem sempre. Algumas pessoas contraíam a varíola grave e todos os inoculados passavam a portar a doença, podendo transmiti-la para os outros. O mundo precisava de uma solução melhor.
No início do século 18, era relativamente sabido na zona rural da Inglaterra que um grupo de pessoas parecia imune à varíola. Mulheres que trabalhavam ordenhando vacas contraíam, por outro lado, uma doença relativamente branda do gado conhecida como varíola bovina, deixando poucas cicatrizes.
Durante uma epidemia de varíola no oeste da Inglaterra em 1774, o fazendeiro Benjamin Jesty decidiu tentar algo. Ele esfregou pus de lesões da varíola bovina das tetas de uma vaca na pele de sua mulher e de seus filhos. Nenhum deles contraiu varíola.
Mas só muitos anos depois alguém saberia do experimento de Jesty. O homem que levou os créditos por inventar a vacinação, e mais importante, popularizá-la, fez observações similares e chegou a conclusões parecidas.
Edward Jenner era um médico do interior que trabalhava na pequena cidade de Berkeley em Gloucestershire. Ele havia estudado em Londres sob orientação de um dos maiores médicos daquele tempo. Acredita-se que o interesse de Jenner em curar a varíola seja influenciado por sua experiência de infância com a inoculação da varíola.
Relata-se que Jenner ficou psicologicamente marcado pela experiência e uma de suas motivações era quão horrível ele achou aquilo tudo, conta Owen Gower, que administra o Museu da Casa do Dr. Jenner. “Ele pensava: ‘Eu quero encontrar uma alternativa, algo mais seguro e menos assustador’.”
Em 1796, após coletar evidências circunstanciais de fazendeiros e ordenhadoras, Jenner decidiu tentar um experimento. Um experimento potencialmente fatal. E em uma criança.
Ele extraiu pus de lesões de varíola bovina das mãos de uma jovem ordenhadora, Sarah Nelms, e a aplicou na pele do garoto James Phipps, de oito anos. Depois de alguns dias de doença branda, James se recuperou o suficiente para Jenner inocular no menino uma amostra de uma bolha da varíola. James não desenvolveu a varíola, e nem ninguém que teve contato próximo com ele.
Ainda que o experimento tenha funcionado, pelos padrões atuais ele seria eticamente problemático.
“Não foi realmente um ensaio clínico, e a escolha de quem eles vacinaram realmente te deixa desconfortável”, diz Sheila Cruickshank, professora de imunologia da Universidade de Manchester, no Reino Unido.
Nem Jenner conhecia a ciência por trás da descoberta. Não havia compreensão de que a doença era causada pelo vírus da varíola, e o funcionamento do sistema imunológico do corpo humano ainda era um mistério naquela época.
“Muito do que eles estavam fazendo era confiar na criação de imunidade, criação de anticorpos, criação de memória, e eles não tinham noção disso”, diz Cruickshank. “É alucinante, e um pouco assustador também.”
Mesmo assim, Jenner percebeu que sua vacina contra a varíola (nome derivado do latim para varíola bovina, vaccinia) tinha o potencial de transformar a medicina e salvar vidas. Mas ele também sabia que só deteria a doença se pudesse vacinar o maior número de pessoas possível.
“Jenner não pretendia lucrar com a vacina, não estava interessado em patenteá-la”, diz Gower. “Ele só queria que as pessoas soubessem sobre isso e queria compartilhar o achado.”
Ele converteu uma casa de verão rústica em seu jardim em seu Templo de Vaccinia e convidou a população local para ser vacinada após a igreja no domingo.
“Ele escreveu a outros médicos oferecendo-lhes amostras do material da vacina e encorajando-os a fazê-lo eles mesmos, para que as pessoas fossem vacinadas por seu próprio profissional de saúde local de confiança”, diz Gower.
“É um tema que vemos agora em termos de defesa da vacina e garantir a aceitação de uma vacina é a mensagem certa entregue pela pessoa certa”, diz ele.
Depois que Jenner publicou suas descobertas, a notícia se espalhou pela Europa. E depois, graças ao apoio do rei da Espanha, em todo o mundo.
O rei Carlos 4º havia perdido diversos membros de sua própria família para a varíola, e outros, como sua filha Maria Luisa, sobreviveram com diversas cicatrizes.
Quando ele ouviu falar sobre a vacina de Jenner, determinou que um médico ligado à corte liderasse uma expedição global para disseminar a vacinação pelo império espanhol. Para ser justo, a maioria dessas áreas do mundo foram lugares para onde, na verdade, colonizadores europeus levaram a varíola e devastaram comunidades.
Em 1803, um navio velejou em direção à América do Sul, com 22 órfãos a bordo para atuar como portadores da vacina.
“Não havia uma produção em massa de vacinas, então eles davam para uma criança”, explica Najera. “Essa criança desenvolveria a lesão, então eles a aplicaria em outra criança dias depois, e depois para outra criança e assim sucessivamente.”
As crianças foram envolvidas na jornada pela diretora do orfanato, Isabel de Zendalay Gomez, que também levou seu filho para contribuir com a missão.
Dividindo forças, a expedição viajou ao redor do Caribe, da América do Sul, da América Central e até cruzou o oceano Pacífico para chegar às Filipinas. Vinte anos depois da descoberta, a vacina de Jenner já salvava milhões de vidas. Logo ela seria popularizada ao redor do mundo. A doença seria completamente erradicada do mundo em 1979.
“Pessoalmente, essa história me dá esperanças sobre a vacina contra a covid-19”, afirma Najera. “Nós temos 200 anos de conhecimento de vírus e do sistema imunológico, mas Jenner fez tudo isso sem saber com o que ele estava lidando.”
“Jenner é um dos meus maiores heróis científicos”, afirma Gower. “Sua determinação e inovação mudaram o mundo e salvaram milhões de vidas e continuam fazendo isso até hoje.”
* Richard Hollingham é jornalista de ciência e de espaço, colaborador da BBC Future e autor do livro Blood and Guts, A History of Surgery (Sangue e C oragem , Uma História da Cirurgia, em tradução livre). Leia a versão original deste texto em ingl ê s no site da BBC Future.
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