Os americanos foram saudados com uma boa notícia em abril de 1955: as autoridades de saúde anunciaram que a primeira vacina contra a poliomielite (também conhecida como pólio ou paralisia infantil) estava pronta para ser utilizada.
No fim da década de 1940, cerca de 35 mil pessoas se tornavam paralíticas a cada ano nos Estados Unidos em decorrência dos surtos de pólio.
Nos anos 1950, a doença ainda estava em circulação, sendo na época responsável por entre 13 mil e 20 mil casos de paralisia anualmente, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês).
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Todo verão, época em que o contágio era maior, os pais trancavam seus filhos em casa para evitar que contraíssem o vírus.
“As pessoas foram colocadas em quarentena, assim como está acontecendo agora, piscinas e cinemas eram fechados, as crianças não saíam para jogar bola, não brincavam com os amigos”, explica à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, Michael Kinch, autor do livro Between hope and fear (“Entre a esperança e o medo”, em tradução livre), que conta a história das vacinas.
“As crianças com paralisia, em cadeiras de rodas ou de muletas, eram um lembrete constante do medo da doença”, acrescenta.
Às vezes, o transporte e o comércio entre as cidades afetadas pela pólio também eram restringidos.
Por isso, a chegada da vacina foi recebida com um grande alívio.
No entanto, apenas um mês após seu lançamento, aconteceu o que ficaria conhecido na história como “incidente Cutter”, forçando o programa de imunização a ser suspenso por alguns meses.
Esse episódio foi fundamental para melhorar os sistemas de fabricação e a regulamentação governamental sobre as vacinas. Mas, antes disso, causou uma grande tragédia.
Vacina eficaz
A poliomielite é uma doença viral que afeta o sistema nervoso e pode causar paralisia, atingindo principalmente crianças com menos de 5 anos.
Atualmente, é considerada erradicada em quase todo o mundo, graças a programas de vacinação em massa — a doença persiste apenas no Paquistão e no Afeganistão.
Em 1935, os cientistas começaram a tentar desenvolver uma vacina contra a pólio. Até que, em 1953, o cientista americano Jonas Salk conseguiu criar uma vacina a partir de cepas inativadas do vírus causador da infecção, o poliovírus.
As cepas foram inativadas por meio da aplicação de formaldeído em culturas do vírus desenvolvidas em células de rim de macaco.
Em 1954, foi realizado um amplo teste clínico da vacina de Salk, que envolveu cerca de 1,8 milhão de crianças nos Estados Unidos, Canadá e Finlândia.
Foi “o maior teste clínico de uma droga ou vacina na história da medicina”, de acordo com a Agência Americana de Drogas e Alimentos (FDA, na sigla em inglês).
Os resultados foram positivos, e as autoridades americanas anunciaram em abril de 1955 que a vacina tinha apresentado uma eficácia de 80% a 90%.
Assim que a vacina foi aprovada, seis laboratórios foram licenciados para produzi-la. Entre eles, o Cutter Laboratories, na Califórnia.
Lotes defeituosos
A empresa farmacêutica lançou 380 mil doses do produto no mercado, mas alguns lotes eram defeituosos: continham acidentalmente cepas ativas do vírus.
Como resultado, foram confirmados mais de 260 casos de pólio — com e sem paralisia — associados à vacina e a transmissões comunitárias a partir de crianças vacinadas, de acordo com o FDA.
Este número não incluía, no entanto, o restante das pessoas que relataram outros sintomas da infecção.
De acordo com o médico Paul Offit, autor do livro The Cutter Incident – How America`s First Polio Vaccine Led to the Growing Vaccine Crisis (“Incidente Cutter: Como a primeira vacina contra pólio levou à crescente crise das vacinas”, em tradução livre), cerca de 40 mil crianças vacinadas desenvolveram dor de cabeça, rigidez na nuca, fraqueza muscular e febre (sintomas de pólio); aproximadamente 164 crianças ficaram paralisadas; e 10 morreram.
A maioria apresentou paralisia nos braços (onde havia tomado a vacina), apesar de a doença paralisar as pernas, detalha Offit no livro.
Diante do surto, em maio de 1955, as autoridades de saúde pública dos EUA recomendaram “a suspensão de todas as vacinações contra pólio até que fosse concluída uma vistoria minuciosa em cada fábrica e uma revisão dos procedimentos para testar a segurança da vacina”, de acordo com o FDA.
Embora tenha havido outros incidentes com vacinas antes e depois deste episódio, Offit afirmou à BBC News Mundo que o incidente Cutter “foi provavelmente o pior desastre biológico da história dos EUA”.
Mas, no outono de 1955, o programa de vacinação foi retomado.
“As pessoas naquela época não questionavam tanto as coisas quanto agora, elas confiavam mais nas autoridades”, diz Kinch à BBC News Mundo.
Além disso, “elas tinham mais medo da pólio”.
A vacinação deu resultado, e a incidência de pólio nos EUA “caiu drasticamente” a partir de 1955. A doença foi erradicada nacionalmente em 1979.
A vacina a partir do vírus inativado, criada por Salk, continua a ser usada nos EUA, enquanto outros países utilizam uma vacina que é administrada por via oral, chamada popularmente de “gotinha”.
O que deu errado com as vacinas?
O livro de Offit aponta vários fatores que levaram as vacinas do Cutter Laboratories a conter cepas ativas do vírus, dando origem ao surto de pólio.
O laboratório havia usado a cepa mais agressiva do poliovírus para fabricar a vacina e filtros defeituosos para separar o vírus do tecido dos macacos em que foram cultivados — e esse tecido poderia conter moléculas ativas do vírus.
Além disso, os testes de segurança exigidos pelo governo — e que foram cumpridos pelo Cutter Laboratories — eram inadequados.
O laboratório tampouco tinha certeza de quanto tempo levaria para inativar o vírus com formaldeído.
“Ninguém demonstrou mais desdém pelas teorias de desativação de Salk do que os laboratórios Cutter. Salk tinha um procedimento para desativar o vírus. Mas os Cutter não sabiam se estavam seguindo as teorias dele ou não. Acho que eles não tinham experiência interna para fazer isso, embora outros laboratórios tivessem”, sugere Offit à BBC News Mundo.
Outro problema foi que, quando os laboratórios Cutter começaram a fabricar a vacina, não havia nenhum requisito de “consistência”. Ou seja, não havia mais a obrigação — vigente no teste clínico — de produzir pelo menos 11 lotes consecutivos da vacina que passassem nos testes de segurança.
Em seu livro, Offit observa que nove de 27 lotes da vacina dos laboratórios Cutter falharam nos testes de segurança. Mas o laboratório tampouco avisou as autoridades que teve problemas para desativar o vírus.
O laboratório Wyeth também fabricou vacinas defeituosas, mas em menor escala do que o Cutter, e deixou 11 crianças com paralisia.
“Os Cutter fizeram muitas coisas erradas e tampouco tinham a experiência interna que outros laboratórios tinham”, escreveu Offit no livro. “Como consequência, produziram uma vacina muito mais perigosa do que qualquer outra vacina nos EUA ou no mundo.”
No entanto, “Cutter culpou Salk por desenvolver um processo que era inconsistente e responsabilizou o governo federal por estabelecer padrões de fabricação e testes inadequados”, acrescentou Offit na publicação.
Como o incidente ajudou a tornar as vacinas seguras?
Na época do incidente Cutter, a regulamentação das vacinas nos EUA cabia ao Laboratório de Controle Biológico, parte do Instituto Nacional de Microbiologia, que por sua vez fazia parte do Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês).
Após o incidente, em junho de 1955, foi criada a Divisão de Padrões Biológicos (DBS, na sigla em inglês), que não era mais uma área subordinada, mas sim um órgão independente dentro do NIH, segundo informações enviadas à BBC News Mundo pelo FDA.
Atualmente, o DBS é o Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica e faz parte do FDA.
Offit destaca em seu livro outros “legados” do incidente, como possibilitar a criação de uma “regulamentação federal eficaz de vacinas”.
“O governo federal abriu uma investigação imediata dos processos de fabricação e teste de todas as empresas e descobriu que os regulamentos e diretrizes eram inadequados”, diz um trecho da publicação.
“Foram desenvolvidos procedimentos melhores para filtração, armazenamento e testes de segurança, e uma vacina segura contra a poliomielite foi fabricada em poucos meses”, acrescenta o autor.
O número de profissionais que regulamentam vacinas nos EUA também aumentou, e a “consistência” (obrigação de produzir um número mínimo de lotes eficazes consecutivos), requisito implementado a partir do incidente Cutter, é exigida até hoje para todos os fabricantes de vacina.
O que podemos aprender com o incidente?
Kinch concorda que o incidente Cutter é “uma lição”.
“Acho que a pressa é uma das preocupações com a vacina atual, ou que a gente acabe em uma situação como a do incidente Cutter, então é uma lição muito importante”, diz.
“Devemos aprender com esse episódio a não apressar a vacina contra covid-19, até que realmente entendamos como fabricá-la com segurança”, acrescenta Kinch.
Além disso, Offit lembra que “hoje sabemos muito mais sobre como produzir vacinas em massa” e há mais regulamentações — ele acredita, portanto, que “o FDA supervisionará adequadamente as vacinas” contra covid-19.
“A vacina contra covid-19 não poderia chegar perto do que aconteceu com aquela vacina. A cepa usada para a vacina contra pólio era a mais virulenta”, diz Offit à BBC News Mundo.
“As estratégias que estamos usando não são perigosas. Certamente haverá uma curva de aprendizado e um custo humano, mas não imagino que chegue perto do custo humano que tivemos na década de 1950”, avalia.
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