Os pedidos de ajuda ao Alcoólicos Anônimos do Brasil (AA Brasil) triplicaram desde o início da pandemia da Covid-19. No site oficial do programa, antes da quarentena, eram registrados de quatro a seis pedidos de ajuda. Hoje, o AA recebe entre dez a 15 solicitações diárias. Com o agravamento da disseminação do novo coronavírus (Sars-CoV-2), por questões de segurança, os encontros presenciais foram substituídos por reuniões on-line, desde o dia 22 de março.
Leia também
- Pesquisa indica alta de depressão e consumo de álcool e tabaco durante pandemia
- OMS orienta governos a limitarem acesso a bebidas alcoólicas durante pandemia
- Alcoolismo não é falta de caráter, diz membro do A.A. em dia de combate à doença
Com a necessidade do isolamento social, o AA, entidade presente no Brasil há 70 anos, precisou se reiventar. A irmandade é fundamentada nas reuniões de compartilhamento de experiências e esperança de homens e mulheres que buscam se recuperar do alcoolismo.
“A gente imaginou que o fechamento seria um fator de risco para as pessoas que estão no início do programa de doze passos e até para quem já está frequentando há algum tempo. Por isso, adaptamos reuniões virtuais que já existiam, antes em menor número”, diz a presidente da junta de serviços do AA, Camila Ribeiro.
Segundo dados da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), desde o início do isolamento social, a venda de bebidas em distribuidoras aumentou 38%, e nos supermercados 27%, mesmo com a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que a comercialização seja limitada no combate à Covid-19.
O AA tem 4.700 grupos ativos no Brasil e uma média de doze mil reuniões semanais. “Para transformar isso em reuniões virtuais, nós passamos a utilizar uma plataforma de vídeos, criamos um manual de orientação para os coordenadores dos grupos e membros sobre como acessar os encontros”, explica Camila.
O que antes era apenas encarado como um complemento dos encontros presenciais, se tornou a realidade na rotina dos grupos do AA. Apesar de algumas dificuldades, como o pouco acesso às tecnologias, falta de familiaridade com os aplicativos e membros sem internet, a adesão às reuniões virtuais surpreendeu a organização. Do dia 20 de março até 25 de maio, foram 2.573 reuniões on-line, uma média de 42.500 participantes no total.
“Apesar de menos encontros do que o presencial, impactamos significativamente porque as plataformas absorvem mais pessoas, cerca de 60 a cada chamada. Além das web chamadas, muitos grupos também estão realizando reuniões pelo Whatsapp e outros meios porque consomem menos dados móveis”, esclarece a presidente da junta de serviços do AA.
As reuniões estão acontecendo todos os dias, a partir das 20h, no site oficial do programa, mesmo para quem ingressará pela primeira vez.
O acolhimento on-line no novo normal e a falta do olho no olho
Marcos Pontual (nome fictício), 63, começou a ingerir bebida alcoólica aos 11 anos. “O meu pai deixava um pouquinho de álcool no copo e o machismo era muito grande onde eu morava. Beber era importante para mostrar que eu era homem”. Foram anos preso ao vício que, segundo ele, transformou a sua vida em “um inferno”.
Em 1982, entrou pela primeira vez em uma sala do AA, sem nem saber do que se tratava. “Me convidaram e eu aceitei, não sabia onde estava e eles não me pediram nenhum documento, nenhuma taxa, nem o meu nome. Me disseram que eu não era nenhum mau-caráter e sim um doente”, lembra Marcos.
Desde então, há mais de trinta anos, ele se mantém sóbrio e segue participando das reuniões em sua região. Marcos conta que com a chegada da pandemia, soube da paralisação das atividades presenciais e ficou assustado. “As diferenças são muitas no mundo da internet. No presencial, temos o calor humano, o acolhimento do olho no olho, é um afeto diferente”.
Apesar de sentir falta e de entender que muitos adictos em recuperação podem ter dificuldade na adaptação às reuniões on-line, ele sabe que é preciso ter consciência da crise de saúde no mundo.
“Hoje essa é a única forma que temos de nos manter unidos. Mesmo sem poder dar um abraço e com o tempo limitado, vamos superar esse momento tão difícil”, diz esperançoso.
Narcóticos Anônimos no isolamento social
“Concedei-nos senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos, e sabedoria para perceber a diferença”. É com essa oração que o grupo Narcóticos Anônimos (NA) inicia todas os encontros presenciais.
Se antes, os frequentadores podiam dar as mãos e formar um círculo, hoje é por meio da tela que conseguem ajudar uns aos outros na recuperação.
Três integrantes da irmandade, que preferiram não divulgar seus nomes, conversaram com a reportagem do portal iG e contaram que as reuniões virtuais já faziam parte da rotina do NA, mas em proporções menores e só para atender a uma demanda de regiões onde os encontros não eram realizados com frequência. Com o isolamento social, os 1.600 grupos físicos e as 4.500 reuniões semanais precisaram se transferir para a internet.
“A gente já tinha o Rad, um sistema de recuperação à distância, que nesse momento, só cresceu. Hoje são 1.719 reuniões virtuais com cerca de 20 participantes cada”, afirma um deles. O grupo conta que também permaneceu com os atendimentos às comunidades terapêuticas, como presídios e clínicas, no formato on-line.
O NA entende que as diferenças são muitas, mas também apotam semelhanças. “A gente pode se recuperar em qualquer lugar que seja, desde que exista uma rede de apoio, de adictos para adictos”.
Sobre as dificuldades para acessar aos encontros, eles também se prepararam para as dificuldades. “Temos um companheiro que não sabe ler, nem escrever, mas sabe mandar áudio no WhatsApp. Ele participa das reuniões na plataforma de vídeos porque tem um pouquinho de boa vontade e perseverança”. Além do vídeo, o grupo também oferece os serviços de recuperação por telefonemas.
No site oficial do NA é possível encontrar reuniões a, praticamente, qualquer hora, até em outros países, facilitando o acesso de quem está chegando agora. Além das orientações via telefone (0800 888 6262) e o conteúdo que o grupo mantém em sua página do Facebook, também ampliam esse suporte.
Principais fatores para o aumento da procura
De acordo com Camila Ribeiro, muitas pessoas conheceram o AA durante a pandemia, principalmente as mulheres. “A gente tem pensado no quanto esse momento de dificuldade e enfrentamento tem mobilizado as pessoas a mudanca e muitas estão se reconhecendo e observando seus comportamentos”, explica.
Um outro fator para o crescimento é o anonimato da internet, o que acaba resguardando o membro fisicamente. “A adesão das mulheres está em conexão com isso, porque na rotina ela sempre coloca os filhos e as obrigações com a casa em primeiro lugar. Nesse momento de quarentena, no tempo mais livre, elas estão buscando o apoio da irmandade, sem ter que estar presencialmente no local”, acrescenta.
Questionada se o modelo on-line deve permanecer mesmo após o fim da pandemia, já que as buscas cresceram, Camila pontua que as reuniões presenciais ainda são prioridade no AA, mas que a experiência com o isolamento social pode servir como o início do tratamento. “É uma decisão importante que vamos tratar mais no futuro”, conclui.
Serviço
Confira as 12 perguntas do teste do Alcoólicos Anônimos
1. Já tentou parar de beber por uma semana (ou mais), sem conseguir atingir seu objetivo?
2. Ressente-se com os conselhos dos outros que tentam fazê-lo parar de beber?
3. Já tentou controlar sua tendência de beber demais, trocando uma bebida alcoólica por outra?
4. Tomou algum trago pela manhã nos últimos doze meses?
5. Inveja as pessoas que podem beber sem criar problemas?
6. Seu problema de bebida vem se tornando cada vez mais sério nos últimos doze meses?
7. A bebida já criou problemas no seu lar?
8. Nas reuniões sociais onde as bebidas são limitadas, você tenta conseguir doses extras?
9. Apesar de prova em contrário, você continua afirmando que bebe quando quer e para quando quer?
10. Faltou ao serviço, durante os últimos doze meses, por causa da bebida?
11. Já experimentou alguma vez ‘apagamento’ durante uma bebedeira?
12. Já pensou alguma vez que poderia aproveitar muito mais a vida, se não bebesse?
Qual foi a contagem? De acordo com o AA, se você respondeu “sim” quatro vezes ou mais é provável que você tenha um problema sério de bebida, ou poderá tê-lo no futuro.
Alcoólicos Anônimos do Brasil
Reuniões virtuais a distância, abertas também para novos membros. O encontro acontece via aplicativo GoToMeeting e a sala é aberta 15 minutos antes do encontro. Diariamente, às 20h (horário de Brasília). Link de acesso e códigos para acesso telefônico no site.
Narcóticos Anônimos
Reuniões virtuais diversas, via Sistema de Recuperação a Distância. Linha de ajuda e orientação, aberta também a novos membros, segue funcionando no 0800 888 6262. Também é possível encontrar apoio via página oficial do grupo no Facebook.
ABEAD – Ação solidária
Atendimento virtual e gratuito com profissionais voluntários, aberto a pessoas com problemas com drogas, álcool, familiares e amigos. Agendamento via ligação de WhatsApp: (51) 98053-6208.
Grupos Familiares Al-Anon do Brasil
Atendimento a novos membros preferencialmente pelo e-mail [email protected] .