A declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes , de que a classe média desperdiça comida que poderia servir para “pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados” desvia para a sociedade a responsabilidade por desenvolver políticas para conter o avanço da fome e da insegurança alimentar, na avaliação de especialistas.
“Com toda aquela alimentação que não foi utilizada durante aquele dia no restaurante, aquilo dá para alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados. É muito melhor do que deixar estragar essa comida toda, que estraga diariamente na mesa das classes mais altas brasileiras, e também o desperdício ao longo de toda a cadeia produtiva”, afirmara o ministro nesta quinta-feira em um evento da Associação Brasileira de Supermercados (Abras).
Para Chico Menezes, que foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e diretor do Ibase, ONG criado por Betinho, e atualmente é analista de políticas da ActionAid, o governo se omite no enfrentamento da fome.
Com a pandemia, em 2020, 19 milhões passaram a conviver com a fome e, pela primeira vez, em 17 anos, mais de 50% da população não tinha certeza se teria comida na mesa, em situação de insegurança alimentar, de acordo com levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) :
“Não me surpreende essa declaração do ministro. Ao lado de diversas outras que acabam expressando um desprezo pela população que se encontra em situação de vulnerabilidade. A alimentação é direito humano e não pode ser tratada assim. O governo não pode lavar as mãos e dizer que a classe média que faça menos desperdício para enfrentar a fome. É uma postura semelhante à omissão e à renúncia que faz hoje em relação à crise sanitária.”
Menezes citou ainda a declaração da ministra da Agricultura, Teresa Cristina, feita no mesmo evento da Abras, sobre aumentar a validade de produtos para oferecer a pessoas que estão em insegurança alimentar, e ainda o pedido do presidente Jair Bolsonaro para que supermercados não aumentem os preços de produtos da cesta básica:
“A declaração da ministra Teresa Cristina sobre validade é outro desrespeito. Então, para aqueles que não podem se alimentar bem, vamos dar alimentos com data vencida? As pessoas não podem ser tratadas desta forma. A alimentação é um direito garantido na Constituição e não pode haver diferenciações. Já o presidente é quase infantil pedindo para supermercado segurar preços. Será que ele não sabe como funciona?”, questiona Menezes.
Você viu?
Programas de combate à fome perderam verba
Chico Menezes ressaltou que o país já vivia um aumento da pobreza e da insegurança alimentar que foi agravado pela pandemia de Covid-19. Segundo ele, desde 2004 o país não vive situação tão grave em relação ao número de brasileiros sem ter o que comer.
O pesquisador diz que, enquanto Paulo Guedes culpa a classe média pelo problema, o governo suspendeu o auxílio emergencial em meio à crise sanitária, reduziu seu valor a menos da metade e mantém milhares de pessoas sem renda à espera de aprovação para recebimento do programa Bolsa Família.
Ele lembrou ainda que o Conselho de Segurança Alimentar, órgão do governo para criação de políticas públicas sobre segurança alimentar e pesquisa sobre a fome no país, foi extinto no governo Bolsonaro.
Para Rodrigo Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, uma série de políticas públicas que ajudaram a tirar o Brasil do mapa da fome foram desmobilizadas, o que levou ao retorno do país à lista dos que têm mais de 5% da população convivendo com a fome. Afonso lembra que o estoque regulador do governo não está sendo utilizado.
O programa previa que o governo comprasse excedente de produção para estoque, e liberasse o produto quando a produção diminuísse e o preço aumentasse.
Além disso, nos últimos dez anos, a redução da área plantada de arroz foi de 50% e de feijão caiu 76%. Segundo ele, o programa de incentivo aos pequenos produtores, responsáveis pela produção de itens da cesta básica, passou por uma acentuada redução de orçamento, caindo de R$ 1,3 bilhões, em 2014, para R$ 150 milhões, em 2020.
Rodrigo Afonso avalia que a volta da fome no país não foi causada pela pandemia de Covid-19. Para ele, a crise sanitária agravou a situação de perda de emprego e renda, mas a falta de investimentos em políticas públicas foi o maior retrocesso na área.
“Ninguém é a favor do desperdício de alimentos, mas a declaração do ministro demonstra desconhecimento sobre o problema da fome no país, porque não é assim que se resolve o problema. Distribuir estes alimentos não é política pública para reduzir a insegurança alimentar. É preciso gerar renda e emprego para que estas famílias não dependam de cestas básica”, disse o diretor da Ação da Cidadania.