“Ali, o que aconteceu foi o seguinte: cada buraco que tinha na casa eles meteram metralhadora, fuzil sei lá o que mais. Eu disse para um dos chefões: ‘Olha, vocês mataram eles dormindo’. Essa é que é a verdade. Não tinha arma nenhuma. Nunca vi armas lá dentro. Para mim, eles foram mortos de uma maneira terrível, que nunca mais esqueço. A verdade é que as duas pessoas que estavam lá dentro morreram sem saber por quê.”
Foi com a frase acima que Maria Andrade, militante do PcdoB responsável pela manutenção da casa no bairro da Lapa, em São Paulo, na qual se reunia quase que diariamente a executiva do então clandestino PcdoB, descreveu como os dirigentes do partido Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar e Ângelo Arroyo, que contavam 63 e 48 anos de idade, respectivamente, foram mortos a tiros, sem possibilidade de defesa, após um cerco policial com 40 homens do Doi-Codi do II Exército e da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, na manhã de 16 de dezembro de 1976.
O MPF não conseguiu identificar agentes que participaram ou comandaram a ação que ainda estejam vivos para serem denunciados pelo assassinato, mas os rastros de ilegalidades que envolveu a “operação” policial foram seguidos, levantados e foi possível identificar as fraudes cometidas no laudo necroscópico de Pomar (o caso de Arroyo é tratado em outro procedimento) pelo então diretor do IML de São Paulo, Harry Shibata, e pelos legistas aposentados Abeylard de Queiroz Orsini e José Gonçalves Dias. Por isso, os três foram denunciados por falsidade ideológica.
Shibata foi requisitado para o serviço por Sérgio Fernando Paranhos Fleury, chefe do Dops, e a ordem era clara: que o laudo confirmasse a versão de resistência à prisão e “legalizar a morte”. Entretanto, Maria Trindade, que estava na casa e sabia que Pomar e Arroyo estavam desarmados, e o jornalista da TV Bandeirantes, Nelson Veiga, que chegou ao local antes do IML, viu que não havia armas junto aos corpos, conforme a cena montada pouco depois pelos agentes, que providenciaram dois revólveres e uma espingarda Winchester enferrujada para criar a cena de resistência ao cerco policial.
Empenhado em fazer a fraude dar certo, Shibata compareceu ao local e determinou que Dias e Orsini assinassem o laudo. Não contava, contudo, com o trabalho de dois peritos da Polícia Civil de São Paulo, que em um laudo demonstraram que não houve disparos de dentro para fora da casa.
No laudo necroscópico de Pomar, constou a versão policial que “o examinado faleceu ao manter tiroteio com a polícia após receber voz de prisão”. Uma análise posterior do laudo feita pelo médico Antenor Chicarino demonstrou, contudo, que diversas lesões na vítima foram omitidas no laudo, inclusive lesões típicas compatíveis com “zona de tatuagem”, a marca de queimado que indica pelo menos um tiro de execução, desferido bem próximo ao corpo, na região temporal.
Para o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, caso a denúncia seja recebida e os réus condenados, a pena deve ser agravada por motivo torpe, pois a falsidade visava assegurar a impunidade dos autores do homicídio de Pomar. Além disso, os três violaram seus deveres de servidores públicos. O MPF requer ainda que Shibata, Orsini e Dias percam suas funções públicas e, consequentemente, suas aposentadorias, assim como eventuais condecorações que tenham recebido.
Perseguição
Pomar era paraense, ex-deputado federal constituinte de 1946 e foi um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil, uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro, ambos proscritos no Brasil. Ele residia e foi um dos líderes da reunião do comitê central do PcdoB, que vinha sendo monitorada pelo Doi-Codi do II Exército desde o dia 10, após a delação de um integrante do partido que havia sido preso dias antes.
O ataque à casa, arquitetado pelo Doi em parceria com a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, não foi realizado na noite do dia 15, mas na manhã do dia 16, após as prisões de João Batista Franco Drummond (morto em consequência das torturas sofridas no Doi-Codi), Wladimir Pomar, Elza Monerat, Haroldo Lima, Aldo Arantes e Joaquim Celso de Lima, que haviam participado da reunião na véspera. O objetivo do regime era desmantelar o partido, responsável pela Guerrilha do Araguaia, foco guerrilheiro dizimado na primeira metade dos anos 70 pelas Forças Armadas.
Para o MPF, os legistas agiram conscientes da simulação e da finalidade de ocultar as verdadeiras circunstâncias da morte de Pomar. Na denúncia e na cota introdutória, o MPF esclarece que o crime se insere num contexto de graves violações de direitos humanos, crimes contra a humanidade, ocorridos num ataque sistemático do governo ditatorial contra opositores, armados ou não.
Segundo o MPF tem insistido em todas as denúncias oferecidas à Justiça desde 2012, os crimes cometidos pelos agentes da repressão não são passíveis de anistia e não prescrevem por três motivos: por terem sido cometidos num contexto de ataque sistemático à população civil brasileira para manter o poder tomado ilegalmente pelos militares em 1964; porque o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund, cuja sentença aponta que interpretações jurídicas que resultem em impunidade devem ser ignoradas; e porque o direito penal internacional prevê que crimes contra a humanidade não estão sujeitos a regras domésticas de anistia e prescrição.
Esta é a quarta denúncia do MPF contra Harry Shibata, ex-diretor do IML de São Paulo, pelo crime de falsidade ideológica, envolvendo a produção de laudos necroscópicos inverídicos. No final dos anos 70, médicos brasileiros denunciaram o caso ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo que o julgou e condenou em 1988. Contudo, a condenação foi revertida 5 anos depois no Conselho Federal de medicina.
A denúncia foi autuada na Justiça Federal sob nº 0011715-42.2016.4.03.6181 e distribuída à 1ª Vara Federal Criminal. Para consultar a tramitação, acesse http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/